Aviso: esta crônica foi inspirada na letra da música Divina Comédia Humana, e pode ou não ser baseada em fatos reais.
Belchior.
Analistas não devem dar respostas, apenas fazer perguntas e estimular o(a) paciente a chegar nas suas próprias conclusões. Às vezes, resgatam alguma citação genérica, com relação ao tema discutido na sessão, para redirecionar as divagações dos analisados.
Autor(a) desconhecido(a)
Escutei essa certa vez. Desconfiei que não era original do(a) analista - sim, normalmente a identidade do paciente é preservada, no caso, já me dedurei, então farei o mistério sobre a identidade e o gênero do(a) meu(minha) analista. Pesquisei na internet. A resposta pode estar errada, afinal, os primeiros resultados não são os verídicos, apenas os que pagam mais anúncios. Não importa, a citação é famosa mesmo, super compartilhada e atribuída à Fátima Abate, uma popular "Life Coach". Outros atribuem a autores diversos: professores americanos, filósofos gregos, entre outros... Decidi, portanto, por falta de evidência científica que ateste a origem da citação de forma inequívoca, manter a referência como autor(a) desconhecido(a).
Adoro citações, tenho um bloco de notas no celular onde guardo as preferidas e poucas originais.
Arthur Conan Doyle, dando voz ao Sherlock Holmes. Em uma tradução livre: O mundo está repleto de obviedades que ninguém, por nenhuma chance, observa.
José Saramago, em O Ensaio Sobre a Cegueira.
Os verbos olhar, ver, reparar e observar não são sinônimos nesses trechos. No meu entender, a visão é o sentido e nos permite ver; já olhar é ver deliberadamente, ou seja, usar o sentido para saciar um interesse, uma curiosidade. No entanto, observar e reparar são algo além de direcionar os olhos para um alvo, de forma intencional ou não. Observar é sentir-se intrigado e buscar compreender o foco do olhar/vista, além da inicial curiosidade e interesse. Por sua vez, reparar consiste em refletir criticamente sobre o observado e - atenção para o duplo sentido - aperfeiçoar ou consertar.
Voltando para o consultório, depois de ouvir a citação inicial, comecei a questionar se o(a) analista estava olhando, observando ou reparando em mim. Fiquei calada uns instantes. Ele(a) bocejou. Acho que estava apenas me olhando. Eu sou uma paciente difícil, fico observando e reparando o(a) analista, no lugar de me permitir ser o objeto de estudo. Respondi: "Você acha que eu me trato bem?" Eu sabia que ele(a) iria devolver a pergunta. Acertei. "Você acha que você se trata bem?" Tive vontade de rir. Respondi: "Não confio muito nos meus critérios, mas tento buscar boas referências. Você já leu Cecília Meireles?" Ele(a) bocejou de novo. Passou o dia ouvindo outras pessoas reclamarem da vida. Agora, a última paciente perguntando de Cecília Meireles, fugindo da análise. O seu bocejo estava justificado e perdoado. Encerrei a sessão um pouco mais cedo, alegando um compromisso. Levantei e parti.
Também adoro poemas, portanto, passei a investir em sessões de análise assíncronas, quase mediúnicas, com Luís de Camões, Fernando Pessoa, Cecília Meireles, Cora Coralina, Adélia Prado e Carlos Drummond.
Imagino todos juntos em uma sala, conversando sobre as moléstias da vida, pauta de quase todas as sessões de terapia.
Começa o Carlos, queixando-se da gauchisse.
Drummond: "Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo".
Fernando e todas as suas demais personalidades pediram um pouco de sossego, não estavam com ânimo de filosofar. Segundo o horóscopo de todos: era dia de ócio.
Pessoa: "Sim, mas agora,
Enquanto dura esta hora,
Este luar, estes ramos,
Esta paz em que estamos,
Deixem-me me crer
O que nunca poderei ser".
Cecília tentava consolar os colegas, ela já estava liberta pela resignação assumida.
Meireles: "Não te aflijas com a pétala que voa:
também é ser, deixar de ser assim".
Adélia divergia da galera, com elegância, classe e caridade cristã, tinha esperança.
Prado: " -- dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou".
Luís se manifestou bocejando, apenas para relembrar que aquela melancolia toda não tinha nada de original, desde o século XVI já estava registrada em versos.
Camões: "Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades".
Nessa hora, chegou Cora, com um bolo quentinho para servir. Pensando em adicionar um pouco de glicose alegre no sangue daqueles rapazes tristes.
Coralina: "Faz de tua vida mesquinha um poema. E viverás no coração dos jovens e na memória das gerações que hão de vir".