Brás Cubas, narrador de toda obra, conta o dia da sua morte. De início, chama atenção a forma que descreve os ancestrais de família. Ao passo que admite a origem trabalhadora do patriarca mais antigo conhecido - timoneiro, profissional de embarcações -, enfatiza a ascensão do primeiro filho deste parente distante, de plebeu à diplomado em Coimbra e membro da corte. O narrador insere, ainda, informações especulativas sobre a vida do ordinário timoneiro, buscando minimizar suas precedência humilde: o sobrenome Cubas também era conhecido pela história de um grande aventureiro português, que havia navegado para África e conquistado muitos mouros (árabes) em nome do Rei. As evidências de tal versão das origens dos Cubas eram meras lendas sem nenhum documento oficial. A partir deste início, fica evidente a preferência pela associação com ancestrais europeus à brasileiros. Atualmente pode ser percebida como a “síndrome de vira-lata”: mesmo brasileira, muitas famílias da elite identificam-se como descendentes de importantes imigrantes, ou personalidades estrangeiras, mas não nativas.
Machado de Assis explora as incongruências e paradoxos dos discursos e comportamentos da elite da corte no Rio de Janeiro. Enquanto a família Cubas se esforça para estar próxima de ancestrais portugueses colonizadores, brigam por espaço de prestígio no governo, apelando ao patriotismo nacionalista: “Graças a Deus, tinha patriotismo, — e batia no peito, — o que não admirava porque era de família; descendia de um antigo capitão-mor muito patriota” (ASSIS, Machado, 1880. Capítulo XCII / Um Homem Extraordinário). O patriotismo, assim como os assentos nos ministérios, era hereditário.
Nos capítulos seguintes, o narrador relembra parte da infância, marcada pela presença de escravos e uma certa arrogância no comportamento dos nobres, que se acreditavam acima das leis e melhores que as classes inferiores. Os relatos indicam ampla falta de respeito com escravos e outros servos. Ainda assim, tudo é descrito com um certo tom de romantismo e nostalgia. O protagonista não demonstra ter ganhado consciência da injustiça e preconceito de seu comportamento, mesmo após a morte continuar tratando-o como aceitável.
A vida doméstica e as relações familiares também eram marcadas pela busca por prestígio. Mesmo quando reconhecidamente vazias e entediantes, as tradições deveriam ser mantidas em prol das aparências: “pareceu-me que ele tinha medo — não medo de mim, nem de si, nem do código, nem da consciência; tinha medo da opinião [...] conclusão, se há alguma no capítulo anterior, é que a opinião é uma boa solda das instituições domésticas” (ASSIS, Machado, 1880. Capítulo CXII / A Opinião).
Ainda jovem, Brás Cubas partiu para estudar em Coimbra. Os títulos de mestrado e doutorado portugueses permanecem sendo característica comum nos currículos de autoridades políticas brasileiras. O próprio personagem confessa ter aproveitado mais a vida boêmia da cidade lusitana do que o conhecimento. Quanto retornou para o Brasil, recebeu a proposta de um cargo político, graças à influência da família, mas fez pouco caso enquanto distraía-se com romances e outros vícios. Pouco tempo depois, percebeu que sua melhor opção seria aceitar a proposta. A essa altura, ela já havia sido repassada a outro: cargo e casamento, negociados em conjunto. Por ironia, apaixona-se de fato pela mulher que poderia ter sido sua esposa, Virgília, e eles envolvem-se em um romance extraconjugal.
Quando o caso ganha repercussão, prejudica a reputação do marido da amante, Lobo Neves, importante membro do ministério. A solução encontrada foi nomear o cônjuge traído para presidência de uma província distante e, com isso, afastar sua família da capital, por algum tempo, enquanto o assunto caísse no esquecimento. Sem a distração do romance, a vida do narrador perde ainda mais o entusiasmo: “Eles lá iam, mar em fora, no espaço e no tempo, e eu ficava-me ali numa ponta de mesa, com os meus quarenta e tantos anos, tão vadios e tão vazios” (ASSIS, Machado, 1880. Capítulo CXV / O Almoço).
Sem cargo no ministério, sem esposa e sem amante, Brás Cubas procura uma nova ocupação. Por influência de antigo colega da época de colegial, Quincas Borba, conhecido por suas sandices, lança um jornal de oposição ao ministério. Nem tanto de oposição, mas de ressentimento, porque não havia conseguido um posto dentro do governo, apesar de várias tentativas. A empreitada logo fracassa. Ainda assim, o personagem ostenta um ar de superioridade e vive sem um propósito claro. Tal vazio é uma marca presente de toda obra. Assemelha-se aos estilos de vida que levam os protagonistas de alguns notáveis romances russos: O Idiota (Dostoyevsky) e Pais e Filhos (Turgenev). O próprio narrador reconhece que corre o risco de parecer cínico, mas se recusa a ser classificado como tal e busca justificativas para seu comportamento incoerente. As estrutura político-sociais brasileira e russa possuem isto em comum: forte influência e resistência de uma classe aristocrática à modernidade, enquanto perdura um Estado corrupto, injusto e corporativista.
É nítido que o protagonista não encontra entusiasmo em nada do que faz. Em um capítulo dedicado apenas às máximas que escreveu ao longo da vida, talvez lições que tenha aprendido, confessa: “São bocejos de enfado; podem servir de epígrafe a discursos sem assunto” (ASSIS, Machado, 1880. Capítulo CXIX / Parênteses).
Perto do fim da vida, surge uma nova oportunidade de casamento, arranjada pela irmã, Sabina, incomodada com o fato de Brás Cubas ainda ser celibato. Porém, mais uma vez o destino destrói as esperanças de felicidade do narrador. A noiva, Nhã-loló, foi vítima da febre amarela.
O relato do luto é breve, e um dos trechos mais genuínos sobre as emoções do narrador: “Ficam sabendo que morreu; acrescentarei que foi por ocasião da primeira entrada da febre amarela. Não digo mais nada, a não ser que a acompanhei até o último jazigo, e me despedi triste, mas sem lágrimas. Concluí que talvez não a amasse deveras [...] Vejam agora a que excessos pode levar uma inadvertência; doeu-me um pouco a cegueira da epidemia que, matando à direita e à esquerda, levou também uma jovem dama, que tinha de ser minha mulher; não cheguei a entender a necessidade da epidemia, menos ainda daquela morte” (ASSIS, Machado, 1880. Capítulo CXXVI / Desconsolação). Não é a morte da noiva que mais lhe deprime, mas a consciência de que esta possivelmente era a última oportunidade de encontrar um sentido para sua existência.
Ao rever a própria vida, depois da morte, amargura arrependimento. Termina a obra com o resumo de tudo que não foi: “Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto” (ASSIS, Machado, 1880. Capítulo CLX / Das Negativas).
A crítica final de Machado de Assis é ao repúdio do trabalho pela elite social e política. Enquanto em outras colônias, em especial os Estados Unidos, a cultura do trabalho e da meritocracia são exaltadas (self made man), no Brasil o enfado é a maior das recompensas que se pode almejar.
Brás Cubas: narrador, membro de família tradicional e influente, descreve os principais eventos de sua vida, depois da morte. Personagens como Brás Cubas não são exclusividade da literatura brasileira, outros clássicos, como Príncipe Michkin de “O Idiota” e Arkádi de “Pais e Filhos”, também criticam o futilidade e as incoerências das aristocracia. Recentemente, na esfera da economia política, a oposição críticas aos capitalistas rentistas ganhou grande repercussão com Thomas Piketty.
Sabina: irmã de Brás Cubas, fiel às tradições e costumes sociais. Incomoda lhe o fato do irmão ser solteiro. Depois da morte do pai, entra em conflito com Brás Cubas devido a divergências sobre a separação da herança, passam uma temporada sem se falar, mas reatam a relação. Ao mesmo tempo que é vítima de uma sociedade machista, tendo sua escolhas e reputação dirigidas pelos “chefes de família” (pai, marido e irmão), também é cúmplice do sistema criticado por Machado de Assis e contribui para sua manutenção.
Cotrim: marido de Sabina e dono de indústria/ comércio. É favorecido pela influência da família Cubas com a elite política, para concluir contratos duradouros e lucrativos com o governo. Personifica o “amigo do rei”.
Virgília: amante de Brás Cubas e parte da alta sociedade. A princípio existe a possibilidade dos dois se casarem. Esse era o desejo do pai de Brás Cubas: um filho titular de cargo público e fiel à perpetuação da família entre a elite influente. Porém, o sonho não se concretiza. A personagem Virgília, em certa medida, pode ser comparada à Burguesinha, da música de Seu Jorge.
Lobo Neves: marido de Virgília e ocupante do cargo que antes fora oferecido à Brás Cubas. Ostenta invejável carreira pública, tendo como única mancha em sua reputação o caso extraconjugal de sua mulher, Virgília, com Brás Cubas, seu amigo próximo. Porém, apenas demonstra desconfiança depois que boatos da corte alcançam notável difusão e não podem ser ignorados. Tem-se a impressão de que Lobo Neves era um sujeito erudito, bem intencionado, porém ingênuo. Desconheceu ou ignorou o caso de Virgília até quando pode. Antes disso, considerava Brás Cubas amigo próximo, recebendo-o com frequência em sua casa. Um típico homem cordial, que entende e segue as regras do jogo.
D. Plácida: mulher que Brás Cubas contrata para cuidar da residência, não oficial, onde vive o caso extraconjugal com Virgília. A mulher possui uma história de vida triste, cheia de tragédias e traições. Tanto Brás Cubas como Virgília acreditam que são os salvadores de D. Plácida e, por isso, a mulher lhes deve lealdade para manter o segredo. Depois que Virgília se muda para fora da corte, Brás Cubas dispensa os serviços de D. Plácida e oferece uma humilde quantia como forma de agradecimento ou indenização. D. Plácida representa as trabalhadoras domésticas, ainda presente em grande número das casas brasileiras, as quais, apesar de tratadas como parte da família, são facilmente esquecidas quando a convivência ou o contrato de trabalho se encerra. Recente filme protagonizado por Regina Casé faz crítica semelhante a essa estrutura social, tipicamente brasileira.
Quincas Borba: colega de infância de Brás Cubas. Ao longo da vida acaba virando maltrapilho, vivendo na rua. Depois de receber herança de família distante de Minas Gerais, torna-se filósofo e estabelece íntima amizade com Brás Cubas, a quem converte para sua filosofia, o “Humanitismo”. Quincas Borba é o protagonista de outro romance de Machado de Assis. Reflete o “bon-vivant”, avesso ao trabalho, mas apreciador do melhor que o dinheiro pode comprar.
Nhã-loló: filha de família humilde, porém ascendente. Nota-se a falta de “berço” pelo nome atribuído à moça: apelido comumente utilizado para crianças ou serviçais, sujeitos imaturos/ incompletos, aos olhos da sociedade. Não possui a erudição e comportamentos esperados de uma senhora da corte. Seu pai, Damasceno, é acusado de comportamentos vulgares, ofensivos à alta sociedade, como frequentar e apostar em brigas de galo. Nhã-loló ficou noiva de Brás Cubas por influência de Sabina. Pela idade avançada e incapacidade de conseguir posição de maior prestígio no governo, a menina torna-se a melhor opção de casamento. Cotrim se opõe à união, por considerar que ela prejudicaria a reputação da família. Porém, Brás Cubas, desesperançoso e deprimido, vê em Nhã-loló a última oportunidade de ser feliz. No entanto, ela morre de febre amarela antes de se casar. Uma morte precoce, desnecessária. Como tantas outras tragédias, poderia ter sido evitada ou minimizada, caso o compromisso com a saúde pública fosse prioridade.
Entre 1822 (Independência) e 1889 (Proclamação da República) o governo brasileiro organizou-se como monarquia e compreende o Primeiro e o Segundo Reinados. O País foi dividido em províncias, para as quais o Presidente era nomeado pelo Imperador que, na época da obra de Machado de Assis, era Dom Pedro II. Durante esse período, as revoltas por independência nas províncias eram recorrentes e o movimento Federalista ganhava adeptos. A partir da Regência (1831), inaugurada quando Dom Pedro I renuncia em favor de seu filho de cinco anos, a oposição entre os liberais - conhecidos como exaltados - e os conservadores - caramurus - passou a ser característica marcante do governo. Consolidam-se, então, os dois grandes partidos imperiais: Conservador (Saquaremas, com bases na Bahia e em Pernambuco) e Liberal (Luzias, com bases em São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul). A questão da progressiva libertação dos escravos; a Guerra do Paraguai (1864-1870) e seus impacto financeiros e desgaste político; as revoltas em prol da independência em várias províncias; as sucessivas revoluções liberais do Século XIX; e a primeira crise do café foram os acontecimentos marcantes para o enfraquecimento da monarquia e a Proclamação da República, em 1889.
O plano de fundo de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” é o Rio de Janeiro, mais especificamente a elite política da corte. As pequenas divergências entre conservadores e liberais (nunca a favor de mudanças radicais), além de forte resistência à modernização das instituições e tradições são exploradas por Machado de Assis. Ao longo da obra, percebe-se que a adesão ao partido conservador ou liberal é mais determinada pelas relações e intrigas interpessoais do que pelas convicções políticas dos membros do ministério. O próprio Brás Cubas lança seu jornal de oposição apenas depois das pretensões de garantir um assento no governo serem frustradas. Tudo é personalíssimo, seja na vida pública ou na privada. Cargos são negociados junto com casamentos; designações de Presidentes para as províncias são definidas em função das intrigas da corte. Ainda persistem resquícios dessas práticas, onde os membros da velha política comportam-se como “Os Donos do Poder”.
De origens humildes, Machado de Assis nasceu e morreu no Rio de Janeiro. Com menos de 15 anos publicou sua primeira obra literária, “À Ilma. Sra. D.P.J.A.” (soneto), no Periódico dos Pobres, em 1854. Dois anos depois, ingressou na Imprensa Nacional, a partir de quando começou a construir sua carreira de escritor. Em 1897, junto com Lúcio de Mendonça, Inglês de Sousa, Olavo Bilac, Afonso Celso, Graça Aranha, Medeiros e Albuquerque, Joaquim Nabuco, Teixeira de Melo, Visconde de Taunay e Ruy Barbosa, fundou a Academia Brasileira de Letras. Consolidou-se como um dos maiores escritores da literatura nacional com uma extensa produção bibliográfica: 10 romances, 216 contos, 10 peças teatrais, 5 coletâneas de poemas e sonetos, e mais de 600 crônicas.
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DOSTOYEVSKY, Fiodor. O Idiota, 1869. Disponível em domínio público (inglês): https://www.gutenberg.org/ebooks/2638;
FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder. 4ª Edição, São Paulo: Editora Globo, 2008;
FAUSTO, Boris. História Concisa do Brasil. 2ª Ed. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 2006;
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Olympio, 1936;
PIKETTY, Thomas. O Capital no Século XXI. Edição digital. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2014;
QUE horas ela volta? Direção de Anna Muylaert. São Paulo: Pandora Filmes, 2015;
SEU JORGE. Burguesinha. Rio de Janeiro: EMI Records, 2007;
TURGUÊNIEV, Ivan. Pais e Filhos, 1862. Disponível em domínio público (inglês): https://www.gutenberg.org/ebooks/47935.
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