As cartas de gaveta são correspondências não enviadas. Uma espécie de registro, para consulta futura e revisão de memória. Reciclagem de sentimentos. Uma alternativa aos diários juvenis para adultos aflitos. Elas também podem ser cápsulas do futuro: transmitir mensagens para alguém em uma data específica.
Eu escrevo cartas de gaveta. Algumas escrevo para outras pessoas, mas não envio. Deixo a tinta fermentar no papel por um tempo. Meses depois releio, para reavaliar a decisão de enviar ou não. Na maior parte das vezes, essas cartas vão para o lixo, junto com a importância que assuntos sem importância às vezes parecem ter em momentos de instabilidade emocional. Há ainda outras cartas de gaveta, bem mais interessantes, as quais escrevo para mim mesma.
Aos 27 redigi uma dessas últimas. A leitura foi agendada para a semana do meu aniversário de 30 anos. Desde criança essa era uma idade chave. Ao longo da juventude fiz muitos planos para a mulher madura que eu queria ser aos 30. Em janeiro de 2021 o prazo ficou curto e o medo de falhar estava latente. Por isso, recorri aos meus fieis confidentes: papel, caneta e palavras.
O dia finalmente chegou, eu recebi a notificação agendada com orientações de onde encontrar a carta de gaveta que havia escondido de mim mesma, para não esbarrar com o papel fora da época certa e acidentalmente o ler antes da hora. Estava sensível, à flor da pele. Não pude evitar, manchei a carta com um par de lágrimas rebeldes.
A data de conhecer a tão esperada mulher madura dos meus sonhos chegara. Não fiquei surpresa quando ela furou comigo. Verdade seja dita, talvez eu também tenha desistido de a encontrar. Podemos concordar que a perda de interesse foi recíproca.
Relendo essas linhas, poucas semanas depois, menos à flor da pele, não chorei. Ao contrário, fiquei contente e satisfeita pelo plano daquela menina ter falhado. Coitada dela, tão imatura e ingênua, achava saber o melhor para si! Renovei os votos com meu futuro:
Erros serão inevitáveis. Prometo tentar repará-los e não ser limitada pelo orgulho.
Expectativas serão frustradas. Prometo seguir em frente, sem remorso pelo que não pode mais ser corrigido.
Em uma coisa, no entanto, a novinha tinha razão: a perfeição é um ideal inatingível e a realidade, às vezes, não tem explicação tampouco responsáveis: nem culpados, nem vítimas.
"Gabriela,
Eu espero que ao ler esta carta você tenha conquistado alguns dos seus objetivos, pois sei que o esforço investido foi grande e árduo. Você gosta de marcos e planos; os 30 anos serão uma data de muita expectativa. Sua disciplina, compromisso e responsabilidade são características positivas, mas às vezes precisam ser calibradas.
Abandone a ideia de controle sem ceder ao niilismo covarde. Acredite que você possui capacidade de lutar e vencer, mas se permita falhar. Perdoe seus erros, aprenda com eles e siga em frente. Eles não são retrocessos, ao contrário, são escudos de proteção, experiências para o futuro. Há momentos que a responsabilidade é sua e há momentos em que não existem responsáveis. A realidade por vezes se impõe.
Não busque a perfeição, pois essa missão está condenada ao fracasso. São seus vícios e suas virtudes que te tornam humana. Não negue sua natureza.
Encontre motivos para continuar. Eles são melhores do que razões para ser feliz. O desejo tem apetite insaciável, viver para servi-lo é uma espécie de escravidão.
Cuide de você. Seja mais útil e menos pragmática. Ajude os outros. Aceite seu limite."