O Romanceiro da Inconfidência é uma coleção de 86 romances poéticos sobre os eventos marcantes deste episódio da história. Podem ser lidos isoladamente ou em sequência. Esse gênero literário é uma composição poético-musical, surgido ainda na Idade Média, muito popular nos territórios ibéricos. A musicalidade, elemento central, é importante para transmissão oral dos versos, considerando que a escrita e a alfabetização não eram amplamente difundidos no momento de sua ascensão.
Além do legado histórico, o livro comprova a possibilidade da poesia estar presente em qualquer espaço, para finalidades múltiplas. O texto traz análises críticas sobre questões políticas e econômicas, com rigor estético e rima. Experimentar o Romanceiro da Inconfidência instiga o leitor a envolver-se com os episódios narrados de maneira mais profunda, não apenas como "estudante", mas na qualidade de parte integrante dos acontecimentos.
A Inconfidência Mineira foi uma conjuração - influenciada pelas ideologias iluministas e pela Revolução Americana - contra o controle excessivo da metrópole sobre os assuntos do interior. Os "sertões" é termo de referência para toda parte do território brasileiro além do litoral. Entre 1500 e 1693 foi ignorado pelo governo-geral (Portugal).
Desse modo, o interior do Brasil Colônia era administrado, sem maiores influências, pelos governos locais. A partir da descoberta do ouro, isso mudou:
“Nos dois primeiros séculos essa realidade foi tornada mentalmente plausível por uma efetiva divisão espacial. De fato, o governo-geral era um caranguejo que arranhava o litoral e quase não perturbava a vida nos vastos sertões. Os governos locais eram autoridade no sertão que progredia, dos que produziam inclusive domínio e defesa do território, além de organizarem os mercados [...] Mas tudo isso iria mudar com a descoberta do ouro” (CALDEIRA, Jorge, 2017, p. 133).Habituados a ter autonomia, as imposições, e especialmente a cobrança excessiva de impostos, motivaram os conjurados a resistirem aos ditames da Coroa Portuguesa. Em 1789, ano do auge da Inconfidência, Dona Maria I era a Rainha de Portugal e dos Algarves. Tinha um perfil altamente conservador e era fiel à Igreja Católica.
Ela ascendera ao trono em 1777, depois da morte de Dom José I, governante mais aberto à modernidade, cujo próximo conselheiro, o Marquês de Pombal, foi marginalizado a partir da ascensão de Dona Maria I. O movimento da Inconfidência Mineira reuniu personalidades da elite intelectual (liras), das forças armadas (espadas) e também da igreja (cruzes), perpassando diversas classes sociais.
Quem é culpado e inocente? Na mesma cova do tempo cai o castigo e o perdão. Morre a tinta das sentenças e o sangue dos enforcados... - liras, espadas e cruzes pura cinza agora são. Na mesma cova, as palavras,o secreto pensamento, as coroas e os machados, mentira e verdade estão. (MEIRELES, Cecília, 1953, Fala Inicial, grifo nosso).O destino dos inconfidentes foi trágico. Tiradentes, o maior dos ícones, foi esquartejado por ordens da Coroa. Outros cederam às pressões e fizeram delações, que permitiram a aniquilação do movimento pelas autoridades. Além disso, os romances denunciam o despreparo e a falta de instrução e cultura dos juízes indicados pela monarquia da metrópole, para atuarem no Brasil. Todos esses aspectos, infelizmente, permanecem presentes na realidade nacional.
“(Pois que importa a vida? aqui se despede do sol da montanha, do aroma silvestre: - venham já soldados que a prender se apressem; venham já meirinhos que os bens lhe seqüestrem; venham, venham, venham.. - que sua alma excede escrivães, carrascos, juízes, chanceleres, frades, brigadeiros, maldições e preces!O livro está organizado em quatro partes, inauguradas sempre por um “Cenário”. O primeiro deles trata dos antecedentes da Inconfidência Mineira, em especial sobre a descoberta do ouro:
“[...]Vencendo o tempo, fértil em mudanças, conversei com doçura as mesmas fontes, e vi serem comuns nossas lembranças.A segunda parte trata dos acontecimentos da conjuração: o início das conversas, as delações, os julgamentos e as condenações.
“Eis a estrada, eis a ponte, eis a montanha sobre a qual se recorta a igreja branca.A terceira parte narra os momentos imediatamente depois da morte de Tiradentes e os destinos dos demais conjurados:
“No jardim que foi de Gonzaga, a pedra é triste, a flor é débil, há na luz uma cor amarga. Os espinhos selvagens crescem, única sorte destas árvores destituídas de primavera, secas, na seca terra ingrata, que é uma cinza de inúteis ervas solta sob os pés de quem passa.Finalmente, na quarta e última parte, a narrativa avança no tempo, para 1816, ano da morte de Dona Maria I, agora louca, no Brasil. Outra personagem sobrevivente, Marília (ou Maria Dorotéia), também tem suas memórias contadas nesta última parte do Romanceiro da Inconfidência.
“[...]Por detrás daqueles morros, por essas Lavras imensas, ouro e diamantes houvera... - e agora só decadência, e florestas de suspiros, e campinas de tristeza...Nas vésperas da publicação do Romanceiro da Inconfidência (1952), Cecília Meireles o descreveu como sendo um livro de independência. Uma interpretação brasileira da história, apesar das influências das formas poéticas ibéricas. Existem duas vozes narrativas que perpassam a obra: uma conta os fatos; e outra canta as almas (GOLDSTEIN, Norma; GOUVÊA, Leila; OLIVEIRA, Ana Maria Domingues, 2019).
A falta de formação das autoridades, evidenciada nos garranchos das sentenças (fontes primárias consultadas pela autora); a denúncia da exaustão da terra pela exploração da riqueza; e a crítica aos espíritos pusilânimes, delatores e traidores: tais temas não dizem respeito apenas ao Brasil Colonial, também contempla contemporaneidade econômica e política percebida pela autora (na qual a atual pode estar incluída), com tendência pessimista e desacreditada (Ibidem, 2019).
Tiradentes (Alferes): Joaquim José da Silva Xavier foi um dos principais responsáveis pela propagação das ideias de emancipação, mobilização de aliados, inclusive de material bélico. Possuía graduação militar de Alferes de Cavalaria e exercia a profissão de curandeiro, o que também incluía tratamentos odontológicos, por isso o cognome Tiradentes. Representa os inconfidentes das “espadas”. As ideias dos conjurados resumem-se nos versos:
“Senzalas. Tronco. Chibata. Congos. Angolas. Benguelas. Ó imenso tumulto humano! E as idéias.Cláudio Manuel da Costa: um dos conjurados, presos pelas autoridades. Sua morte é tida como suicídio, depois da prisão, mas existe dúvida sobre a natureza criminosa deste evento. Autor do épico poema Vila Rica, o qual narra a história da cidade que sediou a Inconfidência Mineira. Representa os inconfidentes das “liras”. Nesta obra já é possível identificar a exaltação das riquezas e potencial das terras mineiras, ideias presentes em tantas outras produções sobre a conjuração:
"Eu te dou a ler uma memória por escrito das virtudes de um Herói que fora digno de melhor engenho para receber um louvor completo. [...] Mas doute, que eu não te ofereça mais que uma composição em metro, para fazer ver o distinto merecimento de um General que tão prudentemente pacificou um Povo rebelde, que segurou a Real Autoridade e que estabeleceu e firmou, entre as diferentes emulações de uns e outros Vassalos desunidos, os interesses que se deviam aos Soberanos Príncipes de Portugal [...].Tomás Antônio Gonzaga: homem erudito, membro da magistratura, noivo de Marília. Devido a sua posição social elevada, é transferido para Moçambique. É um dos homens de maior prestígio a se associar com os inconfidentes, de modo que seu envolvimento comprova a diversidade de classes dos revoltosos. Em África, casa-se com outra mulher, mas dedica muitos versos à Marília (Maria Dorotéia).
“do exílio de MoçambiquePadres Rolim e Toledo: contribuiam para o recrutamento de adeptos ao espírito contra a dominação da metrópole. Ambos foram condenados e presos, em Lisboa. Representa os inconfidentes das “cruzes”.
“Já plangem todos os sinos! Já repercutem os morros. (Deus sabe por que se chora, por que há vestidos de nojo! O padre que lê Voltério é que vem pregar ao povo! Estas Minas enganosas andam cheias de maus sonhos. Já ninguém quer ser vassalo. Todos se sentem seus donos!)”(MEIRELES, Cecília, 1953, Romance XXIII).Dona Maria I: filha primogênita de D. José I, Rei de Portugal, ascendeu ao trono em 1777 e governou até 1792, quando foi afastada por distúrbios psicológicos. Em 1799 D. João VI assumiu definitivamente como Regente e, em 1808 a sede da Corte foi transferida para o Brasil. A Rainha Mãe faleceu no Rio, em 1816. Muito influenciada pelos interesses da elite portuguesa em extrair o máximo de ouro das colônias, para saldar as dívidas e gastos da metrópole, autorizou a dura reprimenda da conjuração. Há quem defenda que D. Maria I não estava louca, mas sim deprimida, por assistir à decadência da monarquia portuguesa.
“Dona Maria Primeira, aqueles que foram salvos não vos livram do remorso deste que não foi perdoado.. (Pobre Rainha colhida pelas intrigas do Paço, pobre Rainha demente, com os olhos em sobressalto, a gemer: “Inferno... Inferno...“ com seus lábios sem pecado.)”(MEIRELES, Cecília, 1953, Romance LX)Marília: Maria Joaquina Dorotéia de Seixas era a dama a quem Gonzaga dedicava muitos de seus poemas. Presenciou a Inconfidência Mineira e, de todos os presentes na obra de Cecília Meireles, é aquela cuja vida foi a mais longa. A última parte do livro descreve os momentos finais, em seu leito de morte, quando recorda-se daquilo que viveu.
“[...]A que se inclina pensativa, e sobre a missa os olhos cerra, já não pertence mais à terra: é só na morte que está viva.Bárbara Heliodora: mulher do inconfidente Inácio José de Alvarenga Peixoto e mãe de Maria Ifigênia (morta ainda moça, em acidente de cavalo). Sonhava em ser Rainha do Brasil, "quando o Brasil fosse dos Brasileiros", visto que seu marido era um Inconfidente confiante na emancipação da colônia (Os Inconfidentes, 1972). Até o final da vida (1819) dedicou-se à agricultura e mineração, viúva e sem filhos. Uma das muitas vítimas, condenadas a viver amarguradas pelas atrocidades cometidas no combate à conjuração.
“(Donzela de tal prosápia, de graça tão peregrina, oxalá não merecera a aflição que lhe destina a grande estrela funesta que sua face ilumina. Fosseis sempre esta de agora, Dona Bárbara Heliodora!A Revolução Francesa (1789) foi a maior das Revoluções Liberais que, segundo Hobsbawm (2013), inaugurou o longo Século XIX.
“A visão iluminista tinha por base a possibilidade, aberta a cada ser humano, de ter consciência de si mesmo e de seus erros e acertos, e de ser dono de seu destino, através da racionalização. A crítica iluminista dirigia-se contra a tradição e a autoridade daqueles que se arrogavam a tarefa de guiar o pensamento, como o monopólio da religião sobre o sagrado. A ideia de autonomia política e intelectual completava esse quadro” (SILVA, 2010, p. 13).No Brasil, a Inconfidência Mineira foi um dos movimentos de emancipação regionais. A repressão não apenas às ideias, mas também aos conjurados, não poupou violência, tal como fizera Luís XVI na França. A censura de pensamento antecedeu e sobreviveu ao levante.
“Um caso exemplar do esforço do governo português em impedir a circulação de idéias na colônia foi o trágico destino da Sociedade Literária do Rio de Janeiro. Criada em 1786, com o apoio do vice-rei, Dom Luís de Vasconcelos e Sousa, a sociedade tinha como sócios figuras importantes da capital, incluindo médicos, advogados, escritores e poetas. Nas reuniões, semanais, discutiam-se assuntos diversos, como Física, Astronomia, Filosofia e Literatura e também os acontecimentos políticos na Europa e nos Estados Unidos. Era a época da Revolução Francesa, da Independência Americana e da Conjuração Mineira, o movimento de independência de Minas Gerais que transformaria o alferes José Joaquim da Silva Xavier, o Tiradentes, em herói nacional. Por temer que a sociedade funcionasse como um fermento incontrolável para essas idéias o então vice-rei, conde de Rezende, sucessor de Vasconcelos e Sousa, decidiu extingui-la em 1794. Suspeitas de envolvimento num suposto complô contra a monarquia, onze pessoas foram presas na Fortaleza da Conceição, onde permaneceram até 1797” (GOMES, Laurentino, 2007. p. 52-53, grifo nosso).Existe vasta produção bibliográfica, cultural e artística sobre esse episódio da história nacional. A data do esquartejamento de Tiradentes, símbolo maior do movimento, é homenageada com feriado nacional, sendo marco importante para a consolidação da República no Brasil. Várias das críticas feitas ao governo central do Vice Reinado ainda são pertinentes e permanecem presentes em muitas instituições ditas democráticas. Como cidadãos, também é nosso dever reivindicar e denunciar tais atitudes, visando não apenas a derrubada, mas principalmente a construção de uma sociedade mais livre, igualitária e fraterna.
Órfã, professora, jornalista, poeta, mãe, esposa, amiga, correspondente, e tantas outras definições aplicáveis não se esgotam: uma mulher com muitas camadas, sensível e sensibilizadora. Nasceu, viveu e morreu no Rio de Janeiro. Viajou muito, especialmente pelas Américas. Sua mãe morreu quando ainda tinha três anos, portanto, foi criada pela avó portuguesa, Jacinta Garcia.
“Olho para Cecília encolhida em sua poltrona, iluminando a penumbra do canto da sala. Vejo-a tão menina olhando o solo e descobrindo na madeira floresta e lendas, deslumbrada de azul! Uma ilha cercada de pontes por todos os lados. Pontes para a ternura, pontes para a poesia, pontes para a alma de cada um. E olhando-a assim, poesia ela mesma, tão alta e tão pura, percebo porque continua a ser a garotinha à procura do eco, correndo por todos os cantos e por todos os deslumbramentos, sem poder recolher o eco da própria voz: nós somos o seu eco, cantamos o seu canto, sem que ela perceba; somos todos um pouco habitantes de sua Ilha de Nanja ‘onde as crianças brincam com pedrinhas, areia, formigas’. ‘Solombra’, a última obra de Cecília, quer dizer só sombra. Cecília, para nós, é só luz” (LEITE, 1964).Na última entrevista concedida à mídia, Cecília Meireles resume muito brevemente sua vasta formação acadêmica e experiência profissional:
“Terminada a Escola Normal, fui lecionar o primário, ainda com um jeito de menina, num sobrado da Avenida Rio Branco. Ali, na mesma sala, havia duas turmas e duas professoras, a metade voltada para cada lado. Pois as crianças, vendo-me quase tão menina quanto elas, viraram quase todas para mim. Sempre gostei muito de ensinar. Trabalhei na Escola Deodoro, ali junto ao relógio da Glória. Fui professora de Literatura da Universidade do Distrito Federal. Criei a primeira biblioteca infantil, ali onde era o Pavilhão Mourisco. Criança que não tivesse onde ficar podia encontrar o livro que lhe faltava, coleção de selos, moedas, jogos de mesa, sonhos, histórias e as explicações de professoras prontas e atentas. Acabou, depois de quatro anos, mas frutificou em São Paulo onde hoje existe até biblioteca infantil para cegos. Também ensinei História do Teatro na Fundação Brasileira. O resto da minha atividade didática está nas conferências em que sempre procuro transmitir algo.” (LEITE, 1964, grifo nosso).Se existe vida depois da morte, não sei. Anjos e demônios, nunca vi. No entanto, acredito em uma forma de magia, de transcendência, a disposição de todos os seres dotados de alma, independente de raça, gênero ou credo. A salvação é a arte, pois ela fica, e por ela vivemos.
“Não te aflijas com a pétala que voa:também é ser, deixar de ser assim.CALDEIRA, Jorge. A História da Riqueza no Brasil. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2017.
GOLDSTEIN, Norma; GOUVÊA, Leila; OLIVEIRA, Ana Maria Domingues. "Romanceiro da Inconfidência", de Cecília Meireles. Entrevista concedida a Marcelo Consentino. Estado da Arte, São Paulo, novembro de 2019. Disponível em <https://bit.ly/3xJkW2o>. Acesso em 24 jun. 2021.
GOMES, Laurentino. 1808. São Paulo: Planeta, 2007.
LEITE, Carlos Willian. «A última entrevista de Cecília Meireles». Revista Manchete, edição nº 630, em 16 de maio de 1964. Disponível em <https://bit.ly/3w03FRo>. Acesso em 25 jun. 2021.
MEIRELES, Cecília. O Romanceiro da Inconfidência. 1ª Edição Digital. São Paulo: Global Editora, 2012. Publicação original de 1953.
SILVA, André Luiz Reis da. A Nova Ordem Europeia no Século XIX: Os efeitos da dupla revolução na história contemporânea. Ciências e Letras, Porto Alegre, n. 47, p. 11-24, jan./jun. 2010. Disponível em <https://bit.ly/2UGrzoh>. Acesso em 25 jun. 2021.