O livro entrega uma análise focada nas pessoas e fundamentada em dados. Jorge Caldeira é um grande historiador, com conhecimentos profundos de economia, e sensibilidade humana aguçada. Um conjunto de qualidades escasso e valioso.
Diferentemente da ideia difundida dos índios serem um povo rudimentar, que viviam apenas para própria subsistência, indícios e fontes sobre a organização social e econômica dos Tupi-Guarani antes da chegada dos colonizadores sugerem o oposto: detinham importantes conhecimentos sobre a floresta, especialmente as propriedades das plantas; e mantinham relações de troca, somente possível pela produção de excedentes.
Sobre os costumes e organização política e social, o casamento era uma instituição importante, pois os maridos mudavam-se para casa da mulher e a prosperidade e o futuro da família dependiam em grande parte dessa escolha. Além dessa diferença em relação aos costumes ocidentais, o casamento não era um compromisso eterno, poderia ser desfeito em casos de insatisfação, então os homens partiam das casas.
Os casamentos também eram elementos políticos, usados para estabelecer alianças entre famílias e fortalecer relações entre grupos/ comunidades diferentes, nesses casos era a mulher quem se mudava para a casa do chefe do outro grupo/ comunidade. Os chefes desses grupos/ comunidades podiam casar-se com mais de uma mulher, o que implicava no estabelecimento de alianças com mais de um grupo/ comunidade diferente.
Os índios não conheciam a escrita, por esse motivo as fontes históricas utilizadas para compreender como viviam é diversificada: fósseis, etnobiologia, artefatos e pinturas, entre outros. Fato é que, quando os portugueses colonizadores chegaram no Brasil, os Tupi-Guarani já estavam organizados em pequenos grupos com relações de aliança entre si, dominando grande parte do território para além da costa até o interior.
Em um aspecto social, o sistema de organização dos índios era mais moderno do que o europeu: não havia escravos. Existia sim hierarquia entre funções sociais, especialmente entre membros “ordinários”, líderes políticos e espirituais e guerreiros.
“Numa sociedade que não funcionava segundo o princípio da acumulação de bens, os escravos não tinham valor como mercadoria Eram apenas seres humanos sem o valor dos guerreiros, portanto destinados a uma existência corriqueira no grupo. Se eram capazes de produzir alimentos e ajudar nos trabalhos, recebiam uma mulher, com quem tinham filhos, e viviam no grupo tal como os velhos que não mais iam às guerras. Mas não participavam dos grandes momentos rituais de ingestão de coragem guerreira - muito menos das guerras, reservadas para os homens valorosos [...] Franceses, espanhóis e portugueses dispersos pelo litoral acabaram se firmando como intermediários, concentrando a recepção e o armazenamento dos utensílios de ferro trazidos de portos europeus e que depois eram usados na troca com o pau-brasil” (CALDEIRA, Jorge. História da Riqueza no Brasil: cinco séculos de pessoas, costumes e governos. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2017. p. 32).Quando os europeus chegaram trouxeram algo inédito para os nativos, muito valioso por economizar horas de trabalho: utensílios de metal. Em troca deles, os nativos entregavam riquezas naturais aos europeus. Desse contato também resultaram casamentos e alianças entre europeus e chefes de comunidades locais. O volume da demanda dos colonizadores era insaciável e pressionava a escala produtiva da economia indígena. Com isso, teve início o uso de cativos de guerra (nativos) como empregados e também como mercadoria.
Alguns dos homens europeus cujos registros confirmam o estabelecimento nas comunidades e grupos de nativos foram: Diogo Álvares Correia, conhecido como Caramuru (Bahia); Vasco Fernandes Lucena (Pernambuco); João Ramalho e Antônio Rodrigues (São Vicente, atual São Paulo). Estes foram os pioneiros europeus na colônia do Brasil, fixados no território antes da descoberta dos metais preciosos e patriarca de importantes famílias do contexto político e econômico brasileiro. Ao longo do século XVI, os indícios, lendas e histórias sobre a existência de ouro na colônia motivou aventureiros de todos os cantos da Europa a viajar para o novo mundo em busca do El Dorado.
Em 1521 o rei português, D. Manuel, instituiu as Ordenações Manuelinas em substituição às Ordenações do Reino com o objetivo de uniformizar a aplicação das leis nos territórios sob seu domínio. Os textos, compostos por cinco livros, promoveram a organização da desigualdade.
Diferentemente da estrutura hierarquizada dos europeus para organizar a vida em sociedade, as autoridades das comunidades indígenas apenas exerciam seu poder de superioridade em casos de guerra, quando assumiam a liderança das tropas. Com a chegada dos colonizadores no novo mundo, o conflito de poder das autoridades foi inevitável: quem assumiria a legitimidade para governar os territórios? Os europeus possuíam organizações especializadas para gerir os empreendimentos de conquistas de novos territórios: a Ordem de Cristo. Portugal recebeu antigos templários perseguidos pelos franceses depois da derrota para os árabes, renomeando a antiga Ordem dos Cavaleiros como a Ordem de Cristo.
A Ordem de Cristo possuía o aval do Vaticano para promover projetos de navegação como se fossem cruzadas, destinadas a conquistar mais territórios para a Igreja. Durante anos a ordem manteve acesso exclusivo sobre importantes conhecimentos tecnológicos marítimos, acumulados pelos ex-templários, isso garantiu vantagens nas navegações para os portugueses. No entanto, ao final do século XV e a expansão do comércio das Índias (controlados principalmente por ingleses e holandeses), a Ordem de Cristo perdia vantagens de tal monopólio e com isso viu seu prestígio afetado na aliança estabelecida com os portugueses. A Coroa portuguesa gradativamente assumiu o controle da ordem, substituindo a antiga autonomia para definir sua hierarquia interna pela subordinação ao rei.
Em 1530 foi enviada ao Brasil uma missão liderada por Martins Afonso de Sousa para demarcação do litoral.
“Martim Afonso deveria percorrer todo o litoral, desde a foz do Amazonas até a foz do Prata, e fincar marcos de pedra nos mais diversos pontos, como prova material do domínio português. (CALDEIRA, Jorge. História da Riqueza no Brasil: cinco séculos de pessoas, costumes e governos. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2017. p. 46).Martim Afonso encontrou, ao longo da missão, chefes de alianças locais entre europeus e autoridades locais, dentre eles João Ramalho e Antônio Rodrigues (náufragos). Na companhia desses homens, visitou a taba de Tibiriça, localizada na região conhecida como Piratininga, onde mais tarde seria fundada a vila de São Vicente (atual Santos/SP).
Impressionado com a organização local e incentivados pelas oportunidades de negócios (e histórias sobre a existência de minerais preciosos) que seriam possíveis com maior esforço de colonização europeu, Martins Afonso:
“ofereceu uma possibilidade para alguns de seus homens: desembarcar, casar com uma mulher indicada por João Ramalho e passar a viver na terra [...] Mandou chamar o escrivão da armada e fez com que formalizasse por escrito os títulos de sesmarias” (CALDEIRA, Jorge. História da Riqueza no Brasil: cinco séculos de pessoas, costumes e governos. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2017. p. 47).Por sua vez:
“Os antigos náufragos foram enobrecidos para garantir uma sólida aliança com os desembarcados. Estes ficariam na terra como esteio de um projeto que incluía algo mais do que as trocas comandadas pelos genros europeus” (CALDEIRA, Jorge. História da Riqueza no Brasil: cinco séculos de pessoas, costumes e governos. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2017. p. 49).Martim Afonso transformou São Vicente em Vila, concedendo poderes reconhecidos pela coroa às lideranças europeias locais. As práticas de organização eram relativamente democráticas e contavam com a realização de eleições para escolha das lideranças, com periodicidade de três anos (apenas os “homens bons”, alfabetizados e donos de terra, possuíam direito ao voto).
No entanto, o rei D. João III alterou radicalmente a forma de gestão da colônia. Cancelou todos os títulos concedidos por Martins Afonso e decidiu segregar o território, a partir das limitações estabelecidas ao longo da missão, em capitanias hereditárias, a partir de 1534.
Fonte: Guia Geográfico de São Paulo, reprodução da imagem contida em “História da Colonização Portuguesa do Brasil, volume 3, 1924, Portugal”.