Michael Sandel, professor de Harvard, ministrou um dos cursos mais populares da instituição, que discute o conceito de justiça. Para sorte de quem não teve o privilégio de comparecer às aulas, ele publicou um livro sobre os muitos anos de estudo e docência que discute o assunto. A obra "Justiça: o que é fazer a coisa certa?" propõe reflexões necessárias para a sociedade contemporânea, com exemplos reais.
(SANDEL, Michael. Justiça: o que é fazer a coisa certa, p. 29)
Em síntese, o livro trata de três perspectivas de justiça: utilitarista, liberal e teleológica. Cada uma delas possui muitos argumentos fortes, e também falhas. Porém, adianto que o autor assume-se adepto da terceira. A sinceridade em afirmar sua preferência é um indício da honestidade intelectual do professor, que não compromete a análise dos méritos das demais correntes de pensamento, nem das lacunas da vertente teleológica.
O precursor do utilitarismo foi Jeremy Bentham (1748-1832). Posteriormente suas ideias foram amadurecidas por outros pensadores notáveis, como John Stuart Mill (1806-1873). A essência dessa corrente é a maximização do bem-estar. O dilema do trem sem freio é o exemplo ideal para compreender os valores priorizados pelos utilitaristas: suponha que você está em um trem sem freio e à frente um grupo de trabalhadores está ameaçado, havendo a possibilidade de ativar uma alavanca e mudar a direção do trem para evitar o atropelamento desse grupo, mas, em contrapartida, atropelar um único indivíduo que está na outra direção, o que faria?
Para os utilitaristas, a resposta é simples: entre condenar um grupo de pessoa ou apenas uma, a opção correta e moral é condenar apenas uma, minimizando danos e maximizando o prazer. A maior crítica ao utilitarismo clássico de Bentham é a sua crença de que todas as escolhas podem ser reduzidas a um cálculo entre prazer e dor. No caso do trem a suposição é simples.
Complexificando a escolha, imagine que você não está dentro do trem, mas fora. No lugar de ativar uma alavanca e salvar o grupo de trabalhadores você tem a opção de empurrar uma pessoa bem robusta e pesada nos trilhos, sabendo que com certeza isso faria o trem parar. E agora? Você também optaria por salvar o grupo e condenar uma única vida? Um utilitarista convicto pensaria nos mesmos termos, sem diferenciar as escolhas. Mill tenta adequar o utilitarismo clássico, excessivamente individualista, para a vida em sociedade, preservando suas ideias principais, resgatando uma virtude humana fundamental: a dignidade.
(SANDEL, Michael. Justiça: o que é fazer a coisa certa? p. 71)
Em contrapartida ao utilitarismo, Immanuel Kant (1724 -1804), David Hume (1711 - 1776) e outros seguidores e reformadores da corrente Liberal da Moral questionam os perigos de se definir o que é prazer e o que é dor de forma absoluta. Partindo da concepção utilitarista, seria possível fazer escolhas por meio de uma análise utilitária entre prazer e dor, válida para todos. Porém, ao definir aquilo que é considerado prazer e aquilo que é considerado dor, corre-se o risco de oprimir parcelas da sociedade que possuem preferências diferentes das ditas "oficiais".
(SANDEL, Michael. Justiça: o que é fazer a coisa certa, p. 137)
(SANDEL, Michael. Justiça: o que é fazer a coisa certa, p. 139)
Portanto, para Kant, a escolha sobre o que é moral não deve ser baseada nos sentidos (prazer e dor), mas sim na razão. Kant acredita que por meio do raciocínio é possível chegar a imperativos categóricos que devem ser usados para distinguir o certo do errado; o justo do injusto. Ao basear nossas escolhas morais nos sentidos, como propõem os utilitaristas, Kant argumenta que nos tornamos escravos dos nossos apetites.
(SANDEL, Michael. Justiça: o que é fazer a coisa certa, p. 156)
Como chegar, então, em nossos imperativos categóricos, universalmente válidos? Existem dois "testes" que eles devem passar para serem considerados morais, na perspectiva liberal kantiana: Universalidade e Valorização da Dignidade Humana.
Tome como exemplo o imperativo "Não Mentir": ele passa em ambos testes. Se todas as pessoas do mundo o seguirem, todos são beneficiados. Porém, se todos mentirem, a verdade perde o valor e todos são prejudicados. Logo, não mentir é um comportamento que pode ser universalizado. Também é um comportamento que valoriza a dignidade humana como princípio elementar. Ao dizer a verdade, estamos respeitando o direito da outra pessoa em ter acesso a informações que vão lhe permitir fazer escolhas melhores, conforme seu próprio raciocínio, ou seja, estamos garantido sua liberdade, de agir conforme a própria razão. Qualquer imperativo (lei ou mandamento) que frustre um desses princípios não pode ser considerado moral.
Será que todo o Direito Moderno passa pelo teste de moralidade de Kant? Fica a reflexão! E isso seria desejável? Viver segundo imperativos categóricos faz de nós pessoas felizes? Com isso não estaríamos suprimindo nossas paixões em prol da razão, da "verdadeira liberdade", o que permitiria uma existência admirável, porém excessivamente sacrificante? Essas lacunas o liberalismo kantiano não responde. Suponho que Kant encontrou a felicidade vivendo uma vida cívica exemplar e contribuindo para o pensamento político da humanidade, porém, todo e qualquer indivíduo gostaria de viver sua vida dedicada a essas finalidades? Imagino que essa suposição não passa no teste da universalidade, apesar de valorizar a dignidade humana acima de tudo.
Utilitaristas valorizam as escolhas que maximizam os prazeres - por natureza subjetivos - e desconsideram a capacidade de raciocínio como ferramenta para encontrar a verdadeira moralidade universal. Liberais morais seguem o extremo oposto, subordinam os prazeres à razão. Porém ambos acreditam que seja possível atingir uma fórmula definitiva para distinguir o comportamento moral do vulgar.
Apesar de ser a última vertente sobre justiça abordada no livro, a teleologia é a mais antiga e foi originalmente elaborada por Aristóteles (385 a.C. - 322 a.C.). Tal corrente pode ser classificada como um "meio-termo" entre Utilitarismo (valorização das paixões) e Liberalismo Moral (valorização da razão). Curioso notar que as tentativas de conciliação de pensamentos posicionados entre polos opostos é anterior a eles.
Jean-Jacques Rousseau (1712 - 1778) contribuiu para o resgate da filosofia clássica nas discussões modernistas sobre Direito e justiça. A ideia do contrato social que todos os cidadãos tacitamente aderem ao optarem por viver em sociedade fornece as bases da compreensão dessa corrente. Para existir justiça é necessário haver um acordo prévio entre um grupo de indivíduos sobre o que é "a vida boa". As constituições nacionais são o mais próximo do ideal de "contrato social". Nesses documentos são estabelecidos quais os valores são priorizados e quais comportamentos são admitidos ou não dentro de determinada sociedade. Nesse sentido, constituições possuem normas que valorizam ora a racionalidade ora algumas virtudes/ paixões.
A política é o ambiente onde a definição do que é a vida boa ocorre, é a arena de discussão e decisão, onde as normas são definidas. Ninguém pode ser completamente livre, como argumenta Kant, se optar em viver em sociedade, pois, para isso, deve submeter-se a contratos sociais: acordos coletivos que não podem agradar a todos completamente. Cada um abre mão de um pouco de liberdade em prol dos benefícios que a vida em sociedade oferece.
(SANDEL, Michael. Justiça: o que é fazer a coisa certa, p. 274)
Diferentemente das correntes anteriores, a deliberação sobre a moralidade no pensamento teleológico não parte de uma perspectiva individual, seja pela razão ou pelos sentidos, mas sim por uma abordagem social. Ao considerar a vida em sociedade admite-se que os indivíduos possuem obrigações. A solidariedade com os membros do grupo, apesar de ser particular, não é uma opção que nós possuímos, mas sim um dever para com os nossos iguais.
(SANDEL, Michael. Justiça: o que é fazer a coisa certa, p. 277)
A dificuldade do ideal teleológico de justiça é colocá-lo em prática. Em teoria, os argumentos são muito convincentes, porém, na realidade, enfrentam barreiras complexas como corrupção, desigualdade social, desonestidade e outros desafios com os quais estamos familiarizados. Adotar uma falsa neutralidade nos discursos políticos é a principal ameaça que o professor identifica. Ao fazer isso não estamos sendo honestos, apenas escondemos as verdadeiras intenções e motivações atrás de discursos pretensiosamente universais e absolutos. A vida boa não é uma receita, é uma conceito aberto sempre em modificação.
O autor dedica a maior parte da obra para discutir as concepções liberais e teleológicas, uma vez que considera que a corrente utilitarista é mais adequada para deliberações sobre a vida privada de cada indivíduo do que para deliberações sobre a vida pública e em sociedade. Reconhece o mérito do pensamento de Bentham, porém, para propósitos distintos dos pretendidos originalmente.
Refletir sobre justiça não é um exercício fácil. Envolve dilemas que não possuem respostas absolutamente certas ou erradas. Ainda assim, por mais que o ideal de justiça neutra, moral e boa seja utópico (porque é não consensual e político por natureza), ele deve ser debatido sempre. Evoluir como espécie requer tempo e adequação constante e ininterrupta ao meio; evoluir como sociedade também.
(SANDEL, Michael. Justiça: o que é fazer a coisa certa, p. 296)
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