Obra: O Seringal
Autor: Miguel Jeronymo Ferrante
Ano de publicação: 1972
Estado: Acre
Onde ler: exemplares de R$ 20,00 até 150,00 (Estante Virtual)
Miguel Ferrante, natural de Rio Branco, nasceu em 1920 e faleceu em 2001. Formou-se em Direito e no início da vida política foi Secretário de Educação e Cultura do Acre. Durante sua carreira passou por diversos postos em Brasília e em São Paulo. Aposentou-se como juiz do Supremo Tribunal de Justiça, em 1990¹. Escreveu obras jurídicas e literárias, sendo "O Seringal" o romance mais conhecido.
A prosa de Miguel Ferrante é acessível a todos os públicos. Como jurista, dominava bem a arte da escrita. Transmite a mensagem sem rebuscamentos desnecessários nem vocabulário exibicionista, diferenciando-se assim de muitos colegas de profissão. Os capítulos do livro "O Seringal" são curtos e bem descritivos. Cada um deles narra episódios comuns na vida dos seringueiros e leva o leitor em viagem no tempo e no espaço. Não há uma trama complexa em curso, apenas a vida ordinária dos personagens. Ao longo da obra, vai-se construindo o cotidiano na colocação Santa Rita, com ênfase nas relações sociais e políticas da região. Colocação é o nome dado às terras produtoras de borracha. São feudos de coronéis, que arrendam pequenas parcelas da propriedade para cada seringueiro e sua família. Em troca do produto extraído, os trabalhadores recebem moradia, um modesto salário e apadrinhamento. Os víveres necessários para sobrevivência são adquiridos na própria colocação, fazendo o dinheiro recebido voltar para os bolsos dos coronéis.
Toinho, personagem principal, é um menino que fica órfão criança. É criado pela comunidade da colocação Santa Rita, onde trabalhava seu pai. Sua infância é breve, interrompida pela necessidade de trabalhar, e sem perspectivas. O menino sonha com uma vida mais aventureira, no entanto, seus planos são atropelados pelas tradições e pelas pessoas do seu convívio. Assim, segue o destino de seringueiro.
Alguns trabalhadores de colocações vizinhas ao Santa Rita se revoltam contra as condições de trabalho, mas são duramente reprimidos. São alerta e exemplo para os demais. Grande parte dos seringueiros são leais e gratos aos coronéis, pela "concessão" da terra para o trabalho, um dos únicos meios de sobrevivência na região. Toinho não se sente seringueiro. Escapa do destino imposto à sua maneira.
Recomendo a leitura. O livro foi republicado em 2007 pela Editora Globo e, juntamente com outras obras, deu origem à minissérie "Amazônia: de Galvez a Chico Mendes".
Obra: Broquéis (1893). Faróis (1900). Últimos Sonetos (1905)
Autor: Cruz e Sousa
Ano de publicação: 1893-1905
Estado: Santa Catarina
Onde ler: Domínio Público (pesquisar por textos de Cruz e Sousa)
João da Cruz e Sousa é considerado o fundador do movimento literário simbolista no Brasil. Nasceu em 1861, em Florianópolis, e faleceu jovem, aos 36 anos, em Minas Gerais. Filho de ex-escravos, teve sua educação patrocinada pelos aristocratas para os quais trabalharam seus pais. Sofreu muitas discriminações em Santa Catarina, tendo sido proibido de ocupar o cargo de promotor público devido a sua raça. Mudou-se para o Rio e intensificou sua dedicação às causas abolicionista e anti racista. Teve quatro filhos, todos mortos precocemente com tuberculose, mal do qual também foi vítima. Ao final da vida, mudou-se para Minas Gerais, para tratamento da saúde.
O Governo de Santa Catarina, em 1979, renomeou o Palácio Rosado para Palácio Cruz e Sousa, sede do Museu Histórico do Estado, em homenagem ao poeta. Em 2007, depois de décadas de negociação, os restos mortais de Cruz e Sousa foram transferidos do Rio de Janeiro para Florianópolis². Esse foi um dos esforços de reparação histórica à memória do escritor, que também incluiu a publicação da coletânea de suas poesias em edição especial, patrocinada pelo governo estadual.
Os poemas de Cruz e Sousa são sofisticados em forma e conteúdo. Por muitos o poeta é chamado de Dante Negro, em referência à Dante Alighieri, autor de "A Divina Comédia", considerado um dos maiores da história. Seus versos são predominantemente melancólicos, tal como foi a sua vida. Ainda assim, transmitem muita beleza e alguma esperança. Deixo em destaque um poema de cada obra. Recomendo fortemente a leitura de outros poemas e a pesquisa sobre sua biografia. Chamo atenção especial para a métrica, as rimas e as mensagens e sentimentos incorporadas em cada verso.
Tuberculosa (Broquéis)
Alta, a frescura da magnólia fresca,
Da cor nupcial da flor da laranjeira,
Doces tons d'ouro de mulher tudesca
Na veludosa e flava cabeleira.
Raro perfil de mármores exatos,
Os olhos de astros vivos que flamejam,
Davam-lhe o aspecto excêntrico dos cactus
E esse alado das pombas, quando adejam...
Radiava nela a incomparável messe
Da saúde brotando vigorosa,
Como o sol que entre névoas resplandece,
Por entre a fina pele cor-de-rosa.
Era assim luminosa e delicada,
Tão nobre sempre de beleza e graça
Que recordava pompas de alvorada,
Sonoridades de cristais de taça.
Mas, pouco a pouco, a ideal delicadeza
Daquele corpo virginal e fino,
Sacrário da mais límpida beleza,
Perdeu a graça e o brilho diamantino.
Tísica e branca, esbelta, frígida e alta
E fraca e magra e transparente e esguia,
Tem agora a feição de ave pernalta,
De um pássaro alvo de aparência fria.
Mãos liriais e diáfanas, de neve,
Rosto onde um sonho aéreo e polar flutua,
Ela apresenta a fluidez, a leve
Ondulação da vaporosa lua.
Entre vidraças, como numa estufa,
No inverno glacial de vento e chuva
Que sobre as telhas tamborila e rufa,
Vejo-a, talhada em nitidez de luva...
E faz lembrar uma esquisita planta
De profundos pomares fabulosos
Ou a angélica imagem de uma Santa
Dentre a auréola de nimbos religiosos.
A enfermidade vai-lhe, palmo a palmo,
Ganhando o corpo, como num terreno...
E com prelúdios místicos de salmo
Cai-lhe a vida em crepúsculo sereno.
Jamais há de ela ter a cor saudável
Para que a carne do seu corpo goze,
Que o que tinha esse corpo de inefável
Cristalizou-se na tuberculose.
Foge ao mundo fatal, arbusto débil,
Monja magoada dos estranhos ritos,
Ó trêmula harpa soluçante, flébil,
Ó soluçante, flébil eucaliptos...
As Estrelas (Faróis)
Lá, nas celestes regiões distantes,
No fundo melancólico da Esfera,
Nos caminhos da eterna Primavera
Do amor, eis as estrelas palpitantes.
Quantos mistérios andarão errantes,
Quantas almas em busca da Quimera,
Lá, das estrelas nessa paz austera
Soluçarão, nos altos céus radiantes.
Finas flores de pérolas e prata,
Das estrelas serenas se desata
Toda a caudal das ilusões insanas.
Quem sabe, pelos tempos esquecidos,
Se as estrelas não são os ais perdidos
Das primitivas legiões humanas?!
Vida obscura (Últimos Sonetos)
Ninguém sentiu o teu espasmo obscuro,
Ó ser humilde entre os humildes seres.
Embriagado, tonto dos prazeres,
O mundo para ti foi negro e duro.
Atravessaste num silêncio escuro
A vida presa a trágicos deveres
E chegaste ao saber de altos saberes
Tornando-te mais simples e mais puro.
Ninguém Te viu o sentimento inquieto,
Magoado, oculto e aterrador, secreto,
Que o coração te apunhalou no mundo.
Mas eu que sempre te segui os passos
Sei que cruz infernal prendeu-te os braços
E o teu suspiro como foi profundo!
Conclusão
Miguel Jeronymo Ferrante, nascido no remoto Acre, ainda nos anos 1920, estudou, trabalhou e chegou ao posto de Ministro do STJ. João de Cruz e Sousa, catarinense, filho de escravos, nascido antes da abolição, não se rendeu ao preconceito contra si, tornou-se poeta e erudito. O melhor do Brasil ainda são os brasileiros. Vamos reconhecer e prestigiar a memória dos tantos heróis nacionais, de todos os cantos do país!
Estórias como as de Toinho, infelizmente, não são apenas ficção. Muitas vezes a realidade é pior e mais cruel. Por meio da literatura, biografias de muitos esquecidos sobrevivem. É importante tomar consciência do passado, pois ele explica costumes, tradições e estruturas que precisam ser mudadas. Aderir a diversidade implica abrir oportunidades para aqueles que foram e são, por muito tempo, excluídos.
Histórias como as de Cruz e Sousa são evidências de que a reparação histórica é importante e necessária. Dotado de talento e genialidade, sofreu descriminação na sua própria terra natal. Privado da ascensão social, teve uma vida marcada por tragédias pessoais e frustrações profissionais. Não alcançou reconhecimento público em vida, especialmente devido à sua raça. O esforço de reparação e preservação da memória do poeta pelo Governo de Santa Catarina me pareceu correto. No entanto, atualmente não vejo iniciativas como essa sendo bem recebidas. Espero que o recente reconhecimento internacional do filme "Ainda estou aqui" reacenda a consciência nacional de valorização da arte brasileira.
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Até a próxima edição!
¹ Sessão Solene em 11 de maio de 1990. Homenagem ao Exmº Sr. Ministro Miguel Ferrante. https://bdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/101079/Homenagem_Miguel_Ferrante.pdf
² Restos Mortais de Cruz e Sousa. https://www.cultura.sc.gov.br/noticias/6961-6961-restosmortais-de-cruz-e-sousa