Obra: Coração Subterrâneo.
Autora: Olga Savary.
Ano de publicação: 2021.
Estado: Pará.
Onde ler: Acervo da BibliOn.
Olga Savary (1933-2020) foi uma poeta e escritora paraense e muito contribuiu para a tradução de diversas obras hispânicas ao Português. Nasceu em Belém e se mudou ainda jovem para o Rio de Janeiro, onde começou a trabalhar com jornalismo. Ficou muito conhecida por ter sido a primeira mulher a lançar um livro exclusivo de poemas eróticos no Brasil. Foi vítima da COVID-19 em 2020. No ano seguinte, a Editora Todavia publicou uma coletânea de seus poemas: Coração Selvagem.
Seus poemas falam do desejo feminino sem ceder à vulgaridade. Muitas analogias são traçadas entre o corpo da mulher e a natureza, isso justifica a escolha do nome: coração (símbolo da paixão e do amor) selvagem (no estado de natureza). Ao contrário de muitos poemas eróticos masculinos, a ênfase não está na saciação carnal, mas sim no suprimento espiritual. O prazer é transcendental. Nas palavras da própria autora, “O erotismo é o grande triângulo entre o homem, a mulher e Deus”.
Destaco da obra o poema “Nome II”. Nele o gozo feminino não é passivo, ao contrário, ele se nutre do prazer e com isso cria a poesia. A poeta faz questão de diferenciar amor de prazer, afastando-se do romantismo esperado das mulheres. Essa segregação me fez lembrar a canção “Amor e Sexo”, de Rita Lee. Assim, no universo erótico de Savary, a lógica dos papéis tradicionais de gênero está invertida: o fruto feminino consome o masculino.
O livro é de rápida leitura. Existem muitos poemas dedicados a outros grandes nomes da literatura brasileira, como Carlos Drummond de Andrade. Para facilitar a interpretação dos versos, sugiro começar a leitura pelo posfácio “A lírica encarnada de Olga Savary”, escrito por Laura Erber.
É interessante destacar o jogo de palavras presente no título do posfácio, onde a palavra “encarnada”, se lida rapidamente, pode ser confundida com “encantada”. Essa confusão também resume a dicotomia da mulher real e aquela retratada nos poemas eróticos escritos por homens: oscilando entre a romantização de seres puros e os corpos objetificados para o prazer masculino. Não sei se a escolha da palavra foi proposital. Sendo ou não, foi muito adequada aos versos de Savary. Neles a mulher é comparada à natureza, à terra, e não é reduzida nem à matéria nem a um ideal irreal. Encarnada, no sentido figurado, representa o sentimento que se entranha, arraiga, penetra na carne. Não é só carne, não é só sentimento.
Nome II
Diria que amor não posso
dar-te de nome, arredia
é o que chamas de posse
à obsessão que te mostra
ao vale de minhas coxas
e maior é o apetite
com que te moldes as entranhas
este fruto que se abre
e ele sim é que te come,
que te come por inteiro
mesmo não sendo repasto
o fruto teu que degluto
que de semente me serve
à poesia.
Obra: O Quinze.
Autora: Rachel de Queiroz.
Ano de publicação: 1930.
Estado: Ceará.
Onde ler: Livro impresso ou digital à venda na Amazon (R$ 37,30 ou R$ 26,11).
Rachel de Queiroz foi a primeira mulher a ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, eleita em 1977. Apesar desse feito, Rachel não se considerava feminista. Para ela, a literatura não deveria se prestar à militância social. Ao contrário, servia como testemunho de seu tempo e de seu lugar. Seus romances sempre trazem forte protagonismo feminino porque essa é a perspectiva pela qual ela experimenta o mundo, não por nenhuma outra razão.
“O Quinze” é a obra mais conhecida da autora e retrata o drama de personagens enfrentando a grande seca que assolou o Nordeste em 1915. O duelo entre o homem e a terra é o grande conflito do romance. Tanto famílias privilegiadas e humildes são assoladas pela força da natureza. A seca resseca não apenas a terra, mas também os corações. Diante de tanto sofrimento e perdas, na luta pela sobrevivência, não existe espaço para desespero, nem para romances.
Sem água, a terra, fonte do alimento, seca:
"Verde, na monotonia cinzenta da paisagem, só algum juazeiro ainda escapo à devastação da rama; mas em geral as pobres árvores apareciam lamentáveis, mostrando os cotos dos galhos como membros amputados e a casca toda raspada em grandes zonas brancas".
Sem água, a esperança, fonte de energia para o trabalho, seca:
“O que desolava Vicente, o que enchia seu coração enérgico de um infinito desânimo, era a triste certeza da inutilidade do seu esforço.”
Sem água, as paixões, fonte de alegrias, seca:
"Ora o amor!… Essa história de amor, absoluto e incoerente, é muito difícil de achar… eu, pelo menos, nunca o vi… o que vejo, por aí, é um instinto de aproximação muito obscuro e tímido, a que a gente obedece conforme as conveniências… Aliás, não falo por mim… que eu, nem esse instinto… Tenho a certeza de que nasci para viver só…".
A única coisa não seca é a fome:
"E se não fosse uma raiz de mucunã arrancada aqui e além, ou alguma batata-brava que a seca ensina a comer, teriam ficado todos pelo caminho, nessas estradas de barro ruivo, semeado de pedras, por onde eles trotavam trôpegos, se arrastando e gemendo".
É muito difícil conceber uma vida sem alimento, sem ânimo, sem amor. Nessas condições, a morte é um alívio. Mas o povo sertanejo é forte e resiste.
Obra: Ciranda de Pedra.
Autora: Lygia Fagundes Telles.
Ano de publicação: 1954.
Estado: São Paulo.
Onde ler: Acervo da BibliOn.
Lygia (1918-2022) é uma das minhas autoras preferidas e Ciranda de Pedra um dos meus romances mais queridos. É reconfortante se identificar com as protagonistas criadas por Lygia, porque deixamos de nos sentir sozinhas. Ler como cada personagem reage aos seus conflitos, muito parecidos com os nossos, ajuda-nos a compreender melhor nós mesmas e outras pessoas com quem convivemos. Ganhamos empatia. Lygia é mestre em criar personagens reais: nem heroínas nem vilãs. Cada uma tem seu jeito de ser, suas ambições e desejos. A partir deles, traçam seu caminho.
Ciranda de Pedra retrata a intimidade de uma família tradicional paulista. O casamento do pai e da mãe entra em conflito, durante uma época na qual o divórcio ainda representava um grande escândalo e vexame social. O fim do relacionamento afeta a todos: marido, mulher, amante, filhas, governanta, empregadas, etc. Toda essa trama, cheia de traumas e sofrimento, poderia ter sido evitada, se a liberdade feminina fosse aceita com a mesma naturalidade da masculina.
A maior justiça de gênero traria benefícios para toda a sociedade, não apenas para as mulheres. Com delicadeza e bom humor, Lygia mostra o universo feminino visto de dentro. Mesmo cheio de boas intenções, as reações dos homens, na perspectiva das mulheres, gera ressentimentos e conflitos não resolvidos.
Por que é tão difícil aceitar as mulheres como seres providos de vontades e capacidades próprias? Para mim, essa questão simples está latente ao longo de toda obra, mas não encontra resposta satisfatória. Fica de reflexão para quem ler.
Todas as obras de abril foram escritas por mulheres, as primeiras desde o começo do Projeto Ler o Brasil. Ainda é pequeno o espaço para escritoras entre os cânones da literatura regional e nacional. Recentemente tem surgido iniciativas para valorizar as vozes femininas. Dentre elas destaco o clube de assinaturas de livros “Amora” e os clubes de leitura “Leia Mulheres”, apoiados por grandes editoras em diversas cidades.
Savary fala do desejo feminino como força vital e não apenas passiva. Rachel fala da ambição intelectual da mulher, retratada na personagem Conceição, que prioriza o conhecimento ao amor. Lygia traz a transgressão aos bons costumes e a não aceitação do papel atribuído às mulheres na sociedade, a partir da insubordinação de Laura e de Virgínia (mãe e filha). Todas essas autoras e suas personagens, em alguma medida, rompem expectativas. São rebeldes.
O adjetivo rebelde é um excelente exemplo para falar das desigualdades de gênero presentes na linguagem e na gramática. Quando usado para descrever homens, assume um sentido menos pejorativo. Um homem rebelde passa a ideia de alguém com opiniões fortes, que sabe se impor. Por outro lado, ao se referir às mulheres, cria a concepção de uma pessoa teimosa, cuja convivência é desagradável.
Outro exemplo é o pronome de tratamento “senhorita”, usado para se referir às mulheres solteiras, sem um pronome equiparado aos homens. Por que o estado civil da mulher justifica o uso de um pronome de tratamento diferente e o dos homens não? Essas injustiças são reflexos de preconceitos enraizados na cultura.
A presença feminina em lugares onde a maioria é masculina incomoda porque força a mudança de comportamento. Quando uma mulher é desrespeitada em ambientes nos quais não se sente à vontade, ir embora é a decisão certa para se proteger. Quando ela sabe que terá empatia de outras mulheres, é muito mais fácil se posicionar e buscar a justiça.
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