Obra: Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Autor: Machado de Assis.
Ano de publicação: 1881.
Estado: Rio de Janeiro.
Onde ler: Acervo da BibliOn ou Domínio Público.
De origens humildes e pele negra, Machado de Assis nasceu e morreu no Rio de Janeiro. Com menos de 15 anos publicou sua primeira obra literária, “À Ilma. Sra. D.P.J.A.” (soneto), no Periódico dos Pobres, em 1854. Dois anos depois, ingressou na Imprensa Nacional, quando começou a construir sua carreira de escritor. Em 1897, junto com Lúcio de Mendonça, Inglês de Sousa, Olavo Bilac, Afonso Celso, Graça Aranha, Medeiros e Albuquerque, Joaquim Nabuco, Teixeira de Melo, Visconde de Taunay e Ruy Barbosa, fundou a Academia Brasileira de Letras, uma das instituições culturais mais longevas do Brasil. Consolidou-se como um dos maiores escritores da literatura nacional com uma extensa produção bibliográfica: 10 romances, 216 contos, 10 peças teatrais, 5 coletâneas de poemas e sonetos, e mais de 600 crônicas.
O plano de fundo de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” é o Rio de Janeiro, mais especificamente a elite política da corte no final do Império. As pequenas divergências entre conservadores e liberais, nunca a favor de mudanças radicais, além da forte resistência à modernização das instituições e tradições são exploradas por Machado de Assis com o humor que lhe é peculiar. Ao longo da obra, percebe-se que a adesão ao partido conservador ou liberal é mais determinada pelas relações e intrigas interpessoais do que pelas verdadeiras convicções políticas dos membros do ministério.
Tudo é personalíssimo, seja na vida pública ou na privada. Cargos são negociados junto com casamentos, e designações de presidentes para as províncias são definidas em função das intrigas da corte. Mais de 140 anos depois, ainda persistem resquícios dessas práticas, onde os membros da política comportam-se como os donos do poder.
Machado inova na narrativa ao trazer como narrador um defunto, que faz a retrospectiva de sua vida, dialogando diretamente com o leitor. A morte torna possível a sinceridade do relato, sem hipocrisias. Os personagens correspondem facilmente à perfis diversos da sociedade brasileira cosmopolita. O romance é composto por capítulos curtos e de fácil leitura, marcas de Machado. Membro de uma família aristocrata decadente, Brás Cubas confessa sua frustração ao final da narrativa, no breve trecho destacado:
“Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto” (ASSIS, Machado, 1880. Capítulo CLX / Das Negativas).
Machado de Assis destaca o culto ao enfado pela elite social e política brasileiras. Enquanto em outras comunidades a cultura do trabalho e da meritocracia são exaltadas (self made man), no Brasil, a maior das recompensas que se pode almejar é não precisar trabalhar para viver. Brás Cubas não se acanha, ao contrário, sente orgulho de reafirmar a sorte de ser herdeiro como grande “conquista” da sua vida.
Ler Machado de Assis é divertido e provocante, além disso, necessário aos que buscam conhecer uma das mais notáveis personalidades brasileiras de todos os tempos.
Obra: Presente de Makunaimã.
Autor: Kamuu Dan.
Ano de publicação: 2021.
Estado: Roraima.
Onde ler: A venda no site da Editora UnB e outros (R$ 25,00 + frete).
Este é um livro infantil, composto integralmente por talentos indígenas: autoria, ilustração (designer) e tradução (mestre em letras). O livro é bilíngue, cada página traz a redação no idioma original e a respectiva tradução. Isso, por si só, já é digno de destaque. É errado enxergar as comunidades indígenas como povos desprovidos de conhecimento e de instrução formal. Em certos aspectos, essas comunidades têm muito a ensinar para os moradores da cidade.
A obra conta a história de uma aldeia que cultiva milhos diversos para sua subsistência. A chegada do homem branco muda o plantio para espécie mais vistosa, modificada geneticamente. A aldeia celebra, pois as primeiras colheitas do novo milho são melhores. No entanto, um pajé mais experiente recolhe as sementes selvagens e segue sozinho para outro lugar, abandonando a comunidade.
Depois de algum tempo, as colheitas deixam de ter o mesmo resultado. A comunidade tenta realizar os antigos rituais, para fortalecer o espírito do milho, mas descobrem que o milho transgênico não tem espírito. Então, recorrem ao homem branco para tentar resolver o problema. Estes respondem que a culpa é da terra: por ser pobre, precisa de fertilizantes caros para manter a produção. Os chefes das comunidades rebatem dizendo que a terra nunca fora fraca e pobre. Lembram-se do antigo pajé e vão em busca dele, envergonhados, para pedir ajuda. Recuperam as sementes selvagens e retomam a sua plantação.
“Como o velho pajé previu, não foi um trabalho fácil, mas o envolvimento de todos contribuiu para que o espírito de Maziki voltasse para as terras férteis da comunidade.”
As ilustrações são belíssimas e o enredo, apesar de simples, é cheio de significado. Recomendo a leitura para crianças e adultos. As lições são válidas para todos: o respeito aos mais velhos, a celebração do alimento, e os riscos da dependência dos alimentos, conteúdos e experiências artificiais. O milho transgênico pode ser comparado, por exemplo, ao excesso de tempo que passamos interagindo em meios digitais. A distância do “espírito das coisas” traz um empobrecimento da terra e das nossas vidas.
Conclusão
A partir de um romance do século XIX e uma história relato de 2021, o estigma do índio preguiçoso e do homem branco esclarecido são invertidas. Enquanto na antiga corte do Rio de Janeiro a elite é avessa ao trabalho, nas comunidades indígenas contemporâneas os chefes participam ativamente das tarefas, cada um possui sua função.
Os povos originários existem e precisam ser preservados e valorizados. Eles são parte essencial da cultura e da diversidade étnica do Brasil. São nossas sementes selvagens. As tradições e conhecimentos que possuem da floresta pode conter as respostas para desafios de sustentabilidade enfrentados hoje pelo mundo. Além disso, também podem contribuir para a cura de certos males da sociedade urbana, a exemplo da frustração com a vida, experimentada por Brás Cubas.
Se cultivamos sementes sem espírito, no início, podemos ser saciados. Brás Cubas relata momentos felizes da sua infância e juventude. No entanto, essas sementes não são sustentáveis, empobrecem a terra. Da mesma forma, o protagonista de Machado de Assis, com passar dos anos, sente-se frustrado pela superficialidade das relações familiares, fraternas e amorosas.
Guardar as sementes selvagens pode prevenir contra a dependência de fertilizantes e outros produtos artificiais. Se tivesse suado o rosto um pouco mais, quem sabe Brás Cubas poderia ter terminado seu relato com mais satisfação? Talvez até encontrasse algum sentido ou espiritualidade para agregar valor em sua existência. Que conselhos o velho pajé poderia oferecer para Brás Cubas?
"O velho pajé sabia que não bastava voltar, já que era grande o trabalho que teria pela frente, trabalho que ele não poderia fazer sozinho. A grande missão era fazer um ritual pedindo permissão para plantar novamente suas sementes sagradas, chamando os espíritos de volta."
Humildade e trabalho podem parecer sinal de fraqueza, mas é assim que os espíritos fortes se sustentam.
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