Todo dia o despertador dispara sempre no tal horário, ela toma o mesmo café da manhã e segue seu ritual até chegar ao trabalho. Lá, é experiente, faz a mesma coisa há duas décadas. Deram-lhe uma placa de metal como reconhecimento.
Tinha marido, filho, profissão e saúde; dinheiro às vezes faltava, mas sempre dava um jeito. Aos finais de semana, não dispensava uma farrinha, coisa simples: música para dançar, cerveja para beber, carne assada para comer. E na falta de carne, servia a salsicha.
Um dia acordou desanimada com aquela repetição cotidiana. Sentiu uma vontade de ter tudo o que nunca tivera, de conhecer desconhecidos ilustres e de viajar para onde jamais havia estado. Ficou triste. O mundo era tão grande, e ela tão pequena.
Deixou de responder ao despertador; perdeu o apetite para o café; e foi ao médico no lugar do trabalho, para buscar alguma receita de pílula mágica que lhe trouxesse de volta a vontade de viver. Saiu de lá com um atestado de três dias. O médico lhe disse não ser nada grave, provavelmente um mal estar decorrente de estresse, cansaço. Três dias de repouso e tudo voltaria ao normal.
Não tinha febre, tosse, nem qualquer outro sintoma de doença. Mas chorava baixinho, de aperto no peito. Passou o primeiro dia na cama, sem conversar com ninguém. Como podia ser contagioso, falou ao marido para dormir no sofá.
Ao final do primeiro dia, o filho, tímido, bateu à porta.
“Mamãe, você vai estar boa amanhã? O papai não sabe fazer meu lanche direito, tem que ser você”. Disse choramingando.
“Não sei, não sei, meu bem. Aguente isso pela mamãe, logo passa, tá bem?”
No segundo dia, o apetite permaneceu ausente. Nem se incomodou em levantar da cama, pois não iria ao trabalho. Decidiu que lá ficaria, repousando, esperando o prazo do médico para a cura milagrosa.
Lá pela hora do almoço, sozinha em casa, ouviu a campainha tocar. Ainda estava de pijama, vestiu um roupão folgado e, com a porta entreaberta, perguntou quem era. Entregador. Provavelmente um erro, não estava esperando nada. Estava endereçada para seu nome, com seu endereço, não era engano.
Uma cesta de delícias com flores e um cartão: “Desejamos sua melhora, você faz muita falta! Abraços dos colegas da repartição”. Quem diria? Deram pela sua ausência e ainda se mobilizaram para enviar bons votos. Estava surpresa.
Agora que já saíra da cama, e diante de tão lindo presente, recheado de coisas gostosas, sentiu fome e comeu. Guardou os chocolates para o filho, a geléia para o marido, e as flores no jarro com água. Deu-se conta de que já eram 13h e ainda estava de pijamas.
Foi tomar banho, mas por ainda estar fraca e sonolenta, escorregou e cortou o joelho. Estava sozinha em casa, sem ninguém para socorrer. Enquanto assistia o sangue jorrar pelo ralo, desfaleceu. Muitos minutos depois, a água gelada que se acumulava no box lhe despertou. Lavou a ferida com sabão, fez um curativo, enxugou-se e voltou para cama. Sim, sentiam sua falta para preparar o lanche, a ausência no trabalho que de certo causava sobrecarga para uns e outros, mas quando caía, tinha que se levantar sozinha. Novamente a angústia apoderou-se dela.
À noite, o marido e o filho chegaram.
“Querida, comprei lasanha congelada para o jantar… já sei, já sei… isso dá câncer, um diazinho só não faz mal, foi o que consegui fazer! Como sobra tempo para levar e buscar o Júnior na escola e ainda cozinhar?… Nossa! O que aconteceu aqui?! O banheiro tem manchas de sangue!” O homem estava afobado, agitado, visivelmente cansado, somente perguntou como a mulher estava se sentindo ao se deparar com a cena do acidente.
“Tropecei, mas agora está tudo bem. Não vou querer comer nada hoje”. Respondeu.
“Mas… mas por que você não me ligou? Eu poderia ter vindo para casa, acompanhar você no médico… e se fosse algo mais grave?” Disse com carinho, sentando-se ao lado da esposa na beira da cama, para checar sua temperatura e fisionomia. Depois de momentos sem resposta alguma, beijou-a na testa, ajeitou seu cobertor, e deixou-a descansando. “Eu preciso de você, e você pode contar comigo também”.
Ele tinha razão, ela se sentia sozinha, abandonada, mas não pediu ajuda a ninguém. Como poderiam saber? Talvez estivesse enganando a si mesma, com todo esse complexo de pequenez. Obviamente, se comparada com todo Universo, era uma parcela insignificante. No entanto, naquele microcosmo rotineiro, familiar, comunitário, ela era peça fundamental para o equilíbrio da vida.
No terceiro dia, tal como o médico havia previsto, acordou muito disposta, e voltou a fazer tudo igual, com a satisfação de nunca antes.