Primeiramente, a definição do termo.
Mentecapto
adjetivo substantivo masculino
que ou quem é mentalmente desordenado; que ou quem perdeu o juízo, o uso da razão; alienado, louco.
que ou quem é destituído de inteligência, de bom senso; tolo, néscio, idiota.
Minas Gerais é o cenário e, em certa medida, o tema central da obra “O Grande Mentecapto”. O narrador dirige-se diretamente ao leitor com o intuito de contar a história de Geraldo Viramundo, personalidade amplamente conhecida pelas suas peripécias em várias cidades importantes do Estado. Com ironia e bom-humor, Fernando Sabino descreve o estilo de vida, tradições e estereótipos da cultura mineira do começo do Século XX.
Ao personagem principal são atribuídas histórias diversas, consolidando sua trajetória em uma grande coletânea de lendas regionais, as quais não se podem comprovar verídicas, mas ainda assim há quem nelas acredite. Apesar de publicada em 1979, a obra tem uma ambientação ampla, começando com a chegada ao Brasil do pai de Viramundo, nos anos 1890, até o final da sua vida.
“Além desses, centenas de outros apelidos, epítetos, alcunhas, cognomes, apodos e aliases acompanharam Viramundo nas suas andanças, variando de época para época e de lugar para lugar. Tanto assim que em cada cidade de Minas ele é conhecido sob denominação distinta - o que dificultou enormemente as minhas pesquisas, no afã de descobrir em cada localidade traços da passagem do grande mentecapto, ao longo de sua atribulada existência” (SABINO, Fernando, 1923, p. 56).
O autor tem como grande referência Euclides da Cunha (autor de "Os Sertões"), a quem faz referências indiretas em mais de uma oportunidade, mas em uma deixa expresso o elogio ao seu estilo crítico e não convencional, em uma nota de rodapé:
“Se algum leitor acaso está achando longos os meus períodos e parênteses, que me perdoe, mas é porque o que tenho a dizer não cabe em orações curtas e bem comportadas, e transcende, como em Euclides da Cunha, todas as regras de estilo recomendadas por Antônio Albalat” (SABINO, Fernando, 1923, p. 114).
As descrições dos capítulos fornecem uma boa ideia das aventuras que o mentecapto viveu. Geraldo Viramundo é um típico mineiro do interior, de boa índole e dotado de espírito cívico, porém excessivamente ingênuo; vítima de infortúnios como a pobreza e discriminação social, e, talvez por isso, um pouco atrapalhado.
“CAPÍTULO I - De como Geraldo Viramundo, tendo nascido em Rio Acima, foi parar no seminário de Mariana, depois de virar homem, levado por um padre que um dia passou por lá.
CAPÍTULO II - Onde não se conta nada do que se passou com Geraldo no seminário de Mariana, mas se explica como ele saiu de lá e se tornou Viramundo.
CAPÍTULO III - Da controvérsia existente em torno do nome de Geraldo Viramundo, e de sua longa viagem de Mariana a Ouro Preto, onde conheceu aquela que viria a ser a sua amada a vida inteira.
CAPÍTULO IV - De como Viramundo colheu rosas e espinhos em Barbacena indo parar num hospício de onde logrou fugir, graças a uma treta bem-sucedida, e acabou candidato a prefeito da cidade.
CAPÍTULO V - Das mirabolantes aventuras de Viramundo no esquadrão de Cavalaria em Juiz de Fora e das suas façanhas durante as manobras militares, que acabaram por devolvê-lo à vida civil.
CAPÍTULO VI - Da passagem musical de Viramundo por São João Del Rei, sua estada na prisão de Tiradentes e o crime de João Toco, até a crise espiritual que o levou à desesperança em Congonhas do Campo.
CAPÍTULO VII - Onde Viramundo, depois de pegar touro à unha em Uberaba, vai de Ceca em Meca para cumprir o seu destino, reverenciando a literatura mineira, passando a noite com um fantasma e quase morrendo por uma mulher.
CAPÍTULO VIII - Viramundo, em Belo Horizonte, entre retirantes, mulheres, doidos e mendigos, cumpre o seu destino” (SABINO, Fernando, 1923, Índice).
Geraldo Viramundo frequenta muitas das instituições públicas às quais é atribuída responsabilidade pela construção e manutenção de uma sociedade justa e civilizada. Entretanto, os resultados dessas experiências são controversos. Como Antônio Conselheiro, em Canudos (mais uma referência à Euclides da Cunha e sua obra "Os Sertões", de não ficção), personifica o inimigo da República; Geraldo Viramundo encarna o cidadão ao qual ela pretende servir e beneficiar. Porém, sua história não termina como um conto de fadas “republicano”.
Na escola, lugar primeiro de formação do cidadão, a falta de compromisso das autoridades com a qualidade do ensino e a impune crueldade dos alunos com colegas, entre bullying e brigas, é tão usual que pode passar despercebida e sem impacto no futuro do personagem. No entanto, é neste momento que ocorre a primeira tragédia da história.
No seminário, para o qual segue ainda jovem, a hipocrisia entre os discursos e práticas da igreja são desmascarados pelo rapaz, de forma não intencional. Apesar de inocente, Viramundo acaba expulso da instituição. Ainda assim, isso não foi suficiente para despertar revolta tampouco um espírito revolucionário em Viramundo.
O personagem não procura trabalho formal nem fixo, vive como andarilho, em troca de favores por abrigo e comida. Por um tempo, é mantido em uma república de estudantes, que se divertem às custas de sua inocência e o enganam com falsas respostas às suas correspondências apaixonadas pela filha do Governador. Iludido e crente da reciprocidade da paixão, Viramundo se envolve em mais um escândalo público.
Devido a consequências mais uma vez não intencionais, talvez nem mesmo imagináveis, das confusões em que se vê inserido, acaba na prisão e depois no manicômio. Também passa pelo exército, onde termina envolvido em uma campanha na qual ninguém sabe explicar o motivo certo. Por um tempo, é acolhido em um cabaré, depois de defender a honra de uma das residentes em um botequim. De volta ao manicômio, finalmente revolta-se e organiza uma manifestação em Belo Horizonte, de onde sai foragido e traído, não sobrevivendo por muito tempo depois.
Geraldo Viramundo vê a si mesmo como cidadão comum, patriota, com elevado espírito cívico. Ao longo da vida passa por uma série de desventuras, ao mesmo tempo cômicas e trágicas, muitas das quais desmerecidas e injustas. O relato termina com uma citação de um autor espanhol não identificado, que resume a crítica à forma com que os negócios, públicos e privados, eram conduzidos em Minas Gerais (ou no “Brasil civilizado”):
“Donde leese por la fuerza de las cosas, lease: por la debilidad de los hombres” (SABINO, Fernando, 1923, p. 232).
Geraldo Viramundo: o protagonista é um homem de origens humildes, natural de uma cidade pequena, de beira de estrada. Em 1940, vinte anos após a publicação da obra, mais de 68% da população brasileira ainda habitava em áreas rurais. O processo de crescimento das grandes cidades estava começando, junto com a chegada de imigrantes e da industrialização. As oportunidades de uma vida melhor, que a modernidade prometia, passaram a atrair as famílias do campo para a cidade. Com muitos irmãos, foi “criado solto”. Logo no começo da obra o retrato da infância descreve a experiência de muitos conterrâneos da época.
“Como seus irmãos ele comeu terra, botou lombrigas, arrebentou cupim para ver como era dentro, seguiu as formigas para ver aonde iam, misturou açúcar com sal no armazém, furtou garrafa de guaraná e depois mijou dentro botando no lugar para o pai não descobrir, brinco com fogo e mijou na cama, brincou de pegador, tic-tac carambola, este dentro e este fora, matou passarinho com bodoque, enterrou ovo choco e fez fogo em cima para ver se nascia pinto, foi mordido de marimbondo e ficou de cara inchada, amarrou lata vazia em rabo de gato, fez galinha dançar em cima de lata quente, [...] foi coroinha na igreja, contou quantas vezes fazia coisa feia para se lembrar na confissão, procurou não mastigar a hóstia para que não saísse sangue, fez flautinha de bambu, ficou preso pela piroca num gargalo de garrafa, molhou o pijama de noite e teve medo de estar doente, ficou com pedra na maminha e perguntou à mãe o que era, se apaixonou pela filha mais velha dos italianos do empório, tirou o cavalinho da chuva, pensou na morte da bezerra, chorou escondido, teve medo, descobriu que o céu era imenso, teve vontade de morrer, ficou acordado de madrugada ouvindo o galo cantar sem saber onde, sentiu dores nos culhões, comeu a negra Adelaide e virou homem” (SABINO, Fernando, 1923, p. 9).
Geraldo Viramundo saiu de Rio Acima, cidade natal, para ingressar no seminário. Tinha o objetivo de explorar o mundo além daquela beira de estrada empoeirada. O mundo, para ele, era Minas Gerais.
Partiu para Mariana, onde começou e não terminou o seminário. Depois de causar tumulto, cultivar desafetos e perturbar a ordem pública, seguiu para Ouro Preto e de lá para os limites da província mineira. Nas suas andanças e aventuras, virou lenda regional. Mais do que a biografia de seu protagonista, “O Grande Mentecapto” é uma biografia de Minas Gerais, no começo do Século XX.
“- Conhecido aonde?
- Por aí. Pelo Brasil inteiro dentro de Minas Gerais. E a senhora, qual é a sua graça?” (SABINO, Fernando, 1923, p. 173).
Governador Ladisbão: O Governador Ladisbão é o típico aristocrata à brasileira. Durante sua visita oficial à Ouro Preto, toda a cidade estava dedicada para as festividades. Os estudantes organizaram uma peça sobre a Inconfidência Mineira; e a alta sociedade, um grande baile em homenagem ao “Ilustríssimo”. Geraldo Viramundo apaixonou-se quando viu Marília Ladisbão, filha do Governador, no alto do carro da passeata. Buscando impressionar a amada, Viramundo termina conseguindo causar tumulto e constrangimento na apresentação teatral e no baile.
Pouco mudou desde então. Já nos anos 1960, outra obra da literatura clássica tem como personagem central o arquétipo político regional. “O Bem Amado”, romance de Dias Gomes, ambientado no Nordeste, virou telenovela e fez grande sucesso em todo Brasil. Até hoje, no início dos anos 2020, a tradicional “Rádio Sucupira”, promovida pela CBN, é um lembrete cotidiano da persistência e abrangência da permanência de “Ladisbões” em todas as esferas do governo.
Capitão Batatinhas e Tenente Fritas: ambos eram superiores militares de Viramundo. Mais uma vez, a atualidade dos arquétipos é digna de destaque. Em 2020, certo Ministro chamou outro membro do Governo Executivo, General, de “maria fofoca”. Nenhuma corporação escapa às conversas de corredor. Há quem acredite que, quanto mais rígida a hierarquia, mais quentes são os cochichos. Um século antes dessa manchete, a história era a mesma. Durante o período que serviu no exército, a função mais importante de Viramundo era a de agente secreto de assuntos pessoais.
“Mas as disputas amorosas entre o Batatinhas e o Fritas nada têm a ver com este relato, senão na medida em que delas Viramundo vinha a contragosto participando, como alcoviteiro de um deles - papel incompatível com o caráter sem jaça de nosso herói. Além do mais, o capitão era casado, de modo que não tinha nada que cobiçar a namorada do tenente [...]. Por isso é de muito bom grado que deixo daqui por diante de fazer qualquer referência a este fato, senão para reportar-me às funestas conseqüências que a bisbilhotice do capitão acarretou para o esquadrão sob seu comando” (SABINO, Fernando, 1923, Capítulo V).
Muitos historiadores, dentre os quais Eric Hobsbawn, adotam como marco inicial do Século XX a I Guerra Mundial (1914), momento em que eclodiram fenômenos que viriam a transformar a organização da vida em sociedade. Tais mudanças começaram a chegar no Brasil ainda na década de 1920, com a promoção da industrialização, o crescimento das cidades e a chegada dos imigrantes, especialmente no Sudeste. Minas Gerais é um Estado extenso: ao mesmo tempo que é impactado pelos grandes centros urbanos (São Paulo e Rio de Janeiro), também possui vilarejos tipicamente interioranos.
Os imigrantes que vieram para o Brasil foram, em grande maioria, operários, não empreendedores. Eles traziam consigo o espírito revolucionário que sondava a Europa, em especial os ideais da Revolução Russa, de 1917. No Brasil, o fôlego da industrialização chegou junto com a sua contestação.
As tentativas anteriores de modernização, em especial a trajetória de Irineu Evangelista de Souza (CALDEIRA, Jorge, 1995), refletiam, desde então, as dificuldades de inovação produtiva do país. Heranças dessas barreiras são combatidas ainda hoje, no desafio de tornar o Brasil uma economia desenvolvida.
Como consequência desse cenário, a expansão da industrialização e da urbanização das grandes capitais fez germinar a crise da República Velha, pois o contexto econômico e as estruturas sociais oligárquicas eram terreno propício para a difusão do estruturalismo. A separação entre capital privado e público e entre poder político e econômico segue nebulosa. Grandes líderes políticos frequentemente são também importantes “capitalistas” ou “industriais”.
Na ruptura política do café com leite - marcada pela vitória de Júlio Prestes (candidato paulista) - Minas Gerais, Pernambuco e Rio Grande do Sul apoiaram a Revolução de 1930, da qual resultou a ascensão de Getúlio Vargas. O prestígio que os postos militares possuíam nesta época é perceptível na obra de Fernando Sabino, ao mesmo tempo em que é questionado. Ser militar era ocupar uma posição honrosa, porém, os funcionamentos internos da corporação não eram tão admiráveis.
Geraldo Viramundo, genuíno patriota, respeitava as autoridades militares, inclusive durante o período em que integrou a corporação. No final da trama, seu espírito nacionalista fica abalado. Depois de uma vida de frustrações, sente-se injustiçado e enganado, isso o leva a liderar um movimento de oposição às autoridades. Porém, é derrotado. Transforma-se em lenda, não devido seu heroísmo ou suas obras e feitos, mas sim pelas diversidade e abrangência de suas aventuras e falta de sorte.
Fernando Sabino nasceu no ano de 1926 em Belo Horizonte, e faleceu no Rio de Janeiro, em 2004. Foi um estudante aplicado e um escritor premiado. Fez parte da tradição modernista, cuja maior característica é a presença de críticas às convenções sociais e reflexões introspectivas. Suas obras também são marcadas pela presença de humor e rompimento de padrões.
Além de romances, publicou contos e crônicas. Trabalhou em jornais e também atuou como professor de portugês, funcionário público em diversos cargos e adido cultural. Algumas citações de suas crônicas, que tiveram espaço garantido em grandes jornais brasileiros de 1960 a 1990, tornaram-se famosos ditos populares: “No fim tudo dá certo, e se não deu certo é porque ainda não chegou ao fim”.
Gostou? Quer ler? Adquira o livro pelo link de associado Amazon e apoie a manutenção do Blog!