Policarpo Quaresma é o modelo de cidadão exemplar brasileiro. Conservador, servidor público e patriota. Aquilo que lhe diferenciava era o interesse pelo conhecimento e a dedicação aos livros, em especial sobre tudo que dizia respeito ao Brasil. Apesar da erudição, não tinha vocação política e também não era homem popular, de muitos amigos. Como é típico dos eruditos, passava a maior parte do tempo sozinho, absorto em seus estudos e reflexões. Dedicava sua vida ao Brasil, o que o título da obra sugere não ter sido uma escolha bem recompensada.
“Nada de ambições políticas ou administrativas; o que Quaresma pensou, ou melhor: o que o patriotismo o fez pensar foi num conhecimento inteiro do Brasil, levando-o a meditações sobre os seus recursos, para depois então apontar os remédios, as medidas progressivas, com pleno conhecimento de causa” (BARRETO, Lima, 1911, p. 13).
Pelos vastos conhecimentos sobre o Brasil, era capaz de fazer análises fundamentadas e diagnósticos completos sobre os problemas que afligiam a Nação. Idealizava grandes projetos, porém não possuía poder nem influência de decisão para executá-los. Seus interesses eram apenas seus, não encontrava ninguém com quem compartilhá-los.
“E desse modo ele ia levando a vida, metade na repartição, sem ser compreendido, e a outra metade em casa, também sem ser compreendido” (BARRETO, Lima, 1911, p. 15).
Seu derradeiro fim tem início quando envia uma proposta de alteração do idioma utilizado nos documentos oficiais da repartição onde trabalhava para o tupi. Acreditava que, dessa forma, a identidade nacional seria mais valorizada e as riquezas melhor aproveitadas. Porém, a ideia é duramente rejeitada.
Quaresma, irresignado, decide expedir seus documentos em tupi e termina sendo afastado do posto, como punição por desobediência. Estava frustrado por ter como superiores pessoas que não possuíam o mesmo patriotismo tampouco o interesse na erudição como ele. Sentia-se incompreendido, mas permanecia convicto de suas ideias, apesar do suceder dos eventos roubar-lhe aos poucos o otimismo de outrora.
“É bom pensar, sonhar consola. — Consola, talvez; mas faz-nos também diferentes dos outros, cava abismos entre os homens…” (BARRETO, Lima, 1911, p. 54).
O final da primeira parte do livro, sobre as origens do triste fim, termina com mais uma dose de pessimismo. A alternância entre sorte e azar; entre a empolgação em aprender e a frustração da vida prática, era o próprio dinamismo da vida.
“[...] ela pensava como esta nossa vida é variada e diversa, como ela é mais rica de aspectos tristes que de alegres, e como na variedade da vida a tristeza pode mais variar que a alegria e como que dá o próprio movimento da vida” (BARRETO, Lima, 1911, p. 58).
Policarpo, limitado do seu poder de atuação, empreende uma mudança radical em sua vida. Muda-se para um sítio, para afastar-se dos negócios públicos e tirar seu sustento das amadas terras brasileiras. Dá o nome de Sossego ao sítio. Antes de ir para o campo, fez amizade com um tipo bem diferente de si: músico, boêmio, conhecido como Ricardo Coração dos Outros, com quem tinha aulas de violão.
O que o protagonista não esperava era que a política invadisse até o seu remoto Sossego. Por mais que tentasse fugir, não era possível evitá-la. E assim, o final de Policarpo não encontrava alternativa para a tristeza.
“O senhor verá com o tempo, major. Na nossa terra não se vive senão de política, fora disso, babau! Agora mesmo anda tudo brigado por causa da questão da eleição de deputados…” (BARRETO, Lima, 1911, p. 75).
“Não podia ser preguiça só ou indolência. Para o seu gasto, para uso próprio, o homem tem sempre energia para trabalhar relativamente. [...] Seria a terra? Que seria? E todas essas questões desafiavam a sua curiosidade, o seu desejo de saber, e também a sua piedade e simpatia por aqueles párias, maltrapilhos, mal alojados, talvez com fome, sorumbáticos! …” (BARRETO, Lima, 1911, p. 99).
A semelhança com a realidade não é mera coincidência. No Brasil, as habilidades políticas até hoje mostram-se mais relevantes para a ascensão social e econômica dos agentes do que as habilidades técnicas. O lado negativo do nosso famoso “jeitinho” amador, do patrimonialista personalista. Os genuinamente patriotas, como Policarpo, não escapam do triste fim: a amargura. A indignação de Policarpo Quaresma ainda é a mesma de muitos brasileiros contemporâneos:
“— Mas, como? se eu não sou eleitor, não me meto, nem quero meter-me em política? — perguntou Quaresma ingenuamente. — Exatamente por isso — disse o doutor com voz forte; e em seguida brandamente: — a seção funciona na sua vizinhança, é ali, na escola, se... — E daí? — Tenho aqui uma carta do Neves, dirigida ao senhor. Se o major quer responder (é melhor já) que não houve eleição... Quer??” (BARRETO, Lima, 1911, p. 111).
“Como era possível fazer prosperar a agricultura, com tantas barreiras e impostos? Se ao monopólio dos atravessadores do Rio se juntavam as exações do Estado, como era possível tirar da terra a remuneração consoladora?” (BARRETO, Lima, 1911, p. 113).
Desiludido com a capital e com o interior, Policarpo retorna à cidade. A terceira e última parte do livro é isenta de esperança e otimismo. Permanece o apreço à pátria, mas um amor traído, um coração irremediavelmente partido. As citações são dignas de melancólicas canções apaixonadas.
“Não é noite, não é dia; não é o dilúculo, não é o crepúsculo; é a hora da angústia, é a luz da incerteza. [...] nossa miséria é mais completa e a falta daqueles mudos marcos da nossa atividade dá mais forte percepção do nosso isolamento no seio da natureza grandiosa” (BARRETO, Lima, 1911, p. 141).
“Fora bom, fora generoso, fora honesto, fora virtuoso — ele que fora tudo isso, ia para a cova sem acompanhamento de um parente, de um amigo, de um camarada…” (BARRETO, Lima, 1911, p. 181).
“Era a filosofia social da época, com forças de religião, com os seus fanáticos, com os seus sacerdotes e pregadores, e ela agia com a maldade de uma crença forte, sobre a qual fizéssemos repousar a felicidade de muitos” (BARRETO, Lima, 1911, p. 181).
Policarpo Quaresma: funcionário público, diligente e justo, sem ambições políticas ou apetite pelo poder. Fascinava-se pelo Brasil, pela sua história, natureza e cultura. A princípio acreditava nas intenções progressistas declaradas pela República. Cheio de boas intenções, buscava à sua maneira deixar uma boa contribuição. Nesse caminho, descobriu a frouxidão dos caracteres e dos discursos que lideram a política nacional. Opõe-se àquilo e por isso encontra seu triste fim.
“Como é fácil na vida tudo ruir! Aquele homem pautado, regrado, honesto, com emprego seguro, tinha uma aparência inabalável; entretanto bastou um grãozinho de sandice...” (BARRETO, Lima, 1911, p. 57)
Ricardo Coração dos Outros: boêmio, artista. Julgado pela maioria como indolente. Torna-se professor de violão de Policarpo, com quem desenvolve amizade. Por meio dessa relação conhece e passa a conviver no ciclo de amizades mais “distinto” do aluno. Aproveita tal oportunidade para conquistar melhor posição social. Com isso, passa a ocupar um posto no governo, graças a sua simpatia e adulação, jamais à experiência profissional ou erudição.
“Dessa maneira, Ricardo Coração dos Outros gozava da estima geral da alta sociedade suburbana. É uma alta sociedade muito especial e que só é alta nos subúrbios. Compõe-se em geral de funcionários públicos, de pequenos negociantes, de médicos com alguma clínica, de tenentes de diferentes milícias, nata essa que impa pelas ruas esburacadas daquelas distantes regiões, assim como nas festas e nos bailes, com mais força que a burguesia de Petrópolis e Botafogo” (BARRETO, Lima, 1911, p. 16).
Caldas, Florêncio, Albernaz, Segismundo: homens do convívio social de Policarpo, sendo a maioria parte militares do Exército, de elevada patente e bem relacionados, que gostavam de se vangloriar de batalhas nas quais nunca lutaram. Favoráveis aos privilégios atribuídos a suas classes e críticos de qualquer ambição externa à corporação.
“—Pra que ele lia tanto? — indagou Caldas. —Telha de menos — disse Florêncio. Genelício atalhou com autoridade: — Ele não era formado, para que meter-se em livros? — É verdade — fez Florêncio. — Isto de livros é bom para os sábios, para os doutores — observou Segismundo. — Devia até ser proibido — disse Genelício — a quem não possuísse um título ‘acadêmico’ ter livros. Evitavam-se assim essas desgraças. Não acham? — Decerto — disse Albernaz. — Decerto — fez Caldas. — Decerto — disse Segismundo” (BARRETO, Lima, 1911, p. 43).
Dona Adelaide: irmã e uma das poucas companhias de Policarpo. Aceitava-o sem julgamentos, ainda que não compreendesse suas motivações. Provavelmente também era indiferente às convenções sociais, pois não se submeteu ao destino de dona de casa e mãe, atribuído às senhoras respeitáveis. Isto não a incomodava. Tampouco sofria das inquietações do irmão, mantinha um nível de “inteligência lúcida”. Ao mesmo tempo que a libertava da passividade cultural, não lhe causava “sandice”.
“Fria, sem imaginação, de inteligência lúcida e positiva, em tudo formava um grande contraste com o irmão; contudo, nunca houve entre eles uma separação profunda” (BARRETO, Lima, 1911, p. 103).
O plano de fundo do romance de Lima Barreto é o governo de Floriano Peixoto (1891-1894), início da experiência republicana brasileira. Depois da Lei Áurea (1888), o Governo Imperial, já enfraquecido pelo distanciamento tanto dos liberais quanto dos conservadores, não resistiu muito. Havia divergências regionais sobre o melhor modelo político a ser adotado. A Guerra de Canudos, brilhantemente analisada por Euclides da Cunha em "Os Sertões", foi um sintoma desse fenômeno.
A indefinição entre um ou outro partido também é notável na evolução da trama. Policarpo, a princípio entusiasmado pela República, conservador esclarecido, defensor da moral e dos bons costumes, defensor dos direitos civis, tornou-se gradativamente frustrado com a condução dos negócios públicos. Sendo ele um agente da Administração, é forçado a reconhecer a pusilanimidade e falta de patriotismo de seus colegas e superiores.
O Segundo Reinado, desconsiderado o período regencial (1840-1889), ainda figura como o período mais estável da política brasileira. A Primeira República pode ser compreendida como uma “solução tampão”, arquitetada pelas elites regionais de Minas Gerais e São Paulo (liberais); Rio de Janeiro (conservadores); e Rio Grande do Sul (positivistas). Em linhas gerais, este período marcou uma transição da diplomacia brasileira da Inglaterra para os Estados Unidos (FAUSTO, Boris, 2006).
Importante destacar que os intitulados liberais, no Brasil, quase nada compartilhavam das ideia que atualmente temos de liberalismo. Eles eram favoráveis a maior autonomia regional em relação ao governo central, sem abrir mão de subvenções e outras medidas protecionistas para manter seus empreendimentos lucrativos. Eram os poucos e grandes detentores do capital mais relevante da época: terras ricas em recursos naturais. Queriam mais independência para gerir seus negócios, com menos intervenção do Estado, exceto para financiamentos e auxílios subsidiados.
A primeira Constituição Republicana (1891) foi influenciada pela norte-americana. Estabeleceu o sistema de voto aos maiores de 21 anos, restrito para analfabetos, mendigos, praças militares e mulheres. Por meio desse dispositivo, observa-se certa indefinição política: ao passo que reconhece o sufrágio “universal”, mantém uma estrutura discriminatória, garantido o controle do poder pela mesma elite de sempre.
O primeiro presidente, Marechal Deodoro da Fonseca, nem sequer terminou seu mandato ー tendência que infelizmente perpetua-se na nossa história. Floriano Peixoto, Vice-Presidente, assumiu o posto e elegeu-se para o mandato seguinte, com o apoio de São Paulo. Depois de Floriano, os militares perderam a presidência e a política do café com leite foi consolidada, com a liderança das oligarquias de São Paulo e Minas Gerais.
A Revolução de 1930 marcou o fracasso de sustentação da República Velha entre as elites paulista e mineira. Os militares retornaram ao poder, apesar das divergências internas. Em 1937, Getúlio Vargas empreendeu o golpe dentro do golpe, instaurando o Estado Novo (1937-1946).
Nascido no Rio de Janeiro, neto de escravos, filho de tipógrafo e professora. Perdeu a mãe ainda jovem e viu o pai ser internado em um sanatório, situação que levaria a consequente e injusta degradação de sua reputação. Teve acesso à boa educação e buscou, incessantemente e sem sucesso, entrar nos círculos intelectuais da sociedade. Perpassa, ele próprio, “a experiência traumática da dependência do álcool, uma das mazelas que, tanto ontem como hoje, recai sobre a população negra em virtude da ‘praga da escravidão’, quando a água ardente era usada como forma de ‘motivação’ ao trabalho dos escravizados” (SILVA, 2020, p. 340). Devido ao alcoolismo também foi internado na mesma clínica do pai. Na época, doenças mentais e etilismo eram tratados em hospícios.
Sua biografia é um exemplo de como a escravidão e o racismo afetam cruelmente a população afrodescendente no Brasil. Lima Barreto denunciou essa ideologia discriminatória. Irresignado, não se deu por vencido. Apesar da qualidade reconhecida e da popularidade de suas obras, não foi aceito na Academia Brasileira de Letras. Isso não se explica somente pela sua cor, visto que Machado de Assis, também negro, foi membro fundador, mas pelo estilo combativo de sua escrita, cujas críticas eram expressas e diretas, sem sutilezas e sarcasmos empregadas por outros grandes nomes da literatura.
“A imprensa, responsável tanto pela divulgação dos acontecimentos como pela formação de opinião, marcou demasiadamente a trajetória de Lima, sobretudo porque ele trazia um estilo que, muitas vezes, era visto de forma enviesada devido à linguagem mordaz ao aço das palavras que cortavam como lâmina, cujo endereço alguns conheciam; ou seja, a ‘carapuça lhes servia’” (SILVA, 2020, p. 342).
A biografia de Lima Barreto é uma denúncia e um testemunho das desigualdades que a sociedade brasileira insiste em ignorar. Resgatar suas obras e promover sua imagem como um dos grandes autores brasileiros é dar nova voz à sua luta. Neste sentido, a biografia lançada pela pesquisadora Lilia Schwarcz, “Lima Barreto: triste visionário” (2017) é leitura essencial para conscientização daqueles que, graças a privilégios étnicos e sociais, não experimentam o sofrimento imposto a mais da metade dos brasileiros.
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FAUSTO, Boris. História Concisa do Brasil. 2ª Ed. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 2006.
SILVA, José Bento Rosa da. Resenha de "Lima Barreto: triste visionário”. Escritas do Tempo, v. 2, n. 4, p. 340-343, 30 jun. 2020. Disponível em <https://periodicos.unifesspa.edu.br/index.php/escritasdotempo/article/view/1385>. Acesso em 26 mar. 2021.