Essa é uma obra de não-ficção, é uma narrativa sincera de uma realidade cruel e desconhecida. O diário de uma moradora de favela, alfabetizada, vivendo em Canindé, Grande São Paulo, entre os anos 1955 e 1960.
Carolina de Jesus narra seu cotidiano. É mãe solteira de três filhos pequenos e trabalha como catadora de papel. Vive situações comuns a todos: cansaço, preocupação, intriga com vizinhos, paixões e desilusões políticas. Ao mesmo tempo, enfrenta escassez de tudo, dá valor às coisas usualmente ignoradas, como sabonete, água filtrada na cozinha, ou uma parede de tijolo para o quarto ter mais privacidade.
Essa dualidade entre momentos corriqueiros da vida de qualquer pessoa com a crueldade da miséria perpassa todo o livro. Os racismo, machismo e a desigualdade são termos que praticamente não aparecem explicitamente nas páginas do livro, nem sequer ideologias e referências à grandes pensadores; mesmo assim, tais conceitos são definidos com detalhes em cada linha e palavra.
A autora foi revelada por um jornalista que fazia matéria sobre a vida na comunidade e se emocionou quando leu os diários de Carolina de Jesus. Ela própria registra muitas críticas aos seus “pares”, ou seja, outros moradores da favela. Melhor do que muitos intelectuais, reconhece que o problema não é apenas externo (os outros, o governo, os ricos), mas também interno (entre os iguais).
Quarto de Despejo não é um livro para ser comentado, é um livro para ser lido, em silêncio; e refletido, com profundidade. É um relato que precisa ser ouvido, sem interrupções. Portanto, registro aqui apenas os destaques da leitura, deixando Carolina falar por si mesma, com seu próprio estilo e completa sinceridade.
“Veio a D. Silvia reclamar contra os meus filhos. Que os meus filhos são mal iducados. Mas eu não encontro defeito nas crianças. Nem nos meus nem nos dela. Sei que criança não nasce com senso. Quando falo com uma criança lhe dirijo palavras agradaveis. O que aborrece-me é elas vir na minha porta para perturbar a minha escassa tranquilidade interior (...) Mesmo elas aborrecendo-me, eu escrevo. Sei dominar meus impulsos. Tenho apenas dois anos de grupo escolar, mas procurei formar o meu carater. A unica coisa que não existe na favela é solidariedade” (JESUS, Carolina, 1960, posição 199).“Estou residindo na favela. Mas se Deus me ajudar hei de mudar daqui. Espero que os políticos estingue as favelas. Há os que prevalecem do meio em que vive, demonstram valentia para intimidar os fracos. Há casa que tem cinco filhos e a velha é quem anda o dia inteiro pedindo esmola. Há as mulheres que os esposos adoece e elas no penado da enfermidade mantem o lar. Os esposos quando vê as esposas manter o lar, não saram nunca mais” (JESUS, Carolina, 1960, posição 268).“Quando cheguei em casa era 22,30. Liguei o radio. Tomei banho. Esquentei comida. Li um pouco. Não sei dormir sem ler. Gosto de manusear um livro. O livro é a melhor invenção do homem” (JESUS, Carolina, 1960, posição 334).“O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no proximo, e nas crianças” (JESUS, Carolina, 1960, posição 416).“Quero ver como é que eu vou morrer. Ninguém deve alimentar a ideia de suicídio. Mas hoje em dia os que vivem até chegar a hora da morte, é um heroi. Porque quem não é forte desanima” (JESUS, Carolina, 1960, posição 903).“Em 1952 eu procurava ingressar na Vera Cruz e fui no Juizado falar com o Dr. Nascimento se havia possibilidade de internar os meus filhos. Ele disse-me que se os meus filhos fossem para o Abrigo que ia sair ladrões. Fiquei horrorisada ouvindo um Juiz dizer isto” (JESUS, Carolina, 1960, posição 1320).“—Quais são suas pretensões na política? —Quero ficar rico igual ao Adhemar. Fiquei horrorisada. Ninguém mais apresenta amor patriótico” (JESUS, Carolina, 1960, posição 1543).“A favela é o quarto de despejo. E as autoridades ignoram que tem o quarto de despejo” (JESUS, Carolina, 1960, posição 1612).“O guarda civil é branco. E há certos brancos que transforma preto em bode expiatório. Quem sabe se guarda civil ignora que já foi extinta a escravidão e ainda estamos no regime da chibata” (JESUS, Carolina, 1960, posição 334).“Quando despertei pensei: eu sou tão pobre. Não posso ir num espetáculo, porisso Deus envia-me estes sonhos deslumbrantes para minh’alma dolorida. Ao Deus que me proteje, envio os meus agradecimentos” (JESUS, Carolina, 1960, posição 1819).“Hoje é o dia da pascoa de Moysés. O Deus dos judeus. Que libertou os judeus até hoje. O preto é perseguido porque a sua pele é da cor da noite. E o judeu porque é inteligente. Moysés quando via os judeus descalços e rotos orava pedindo a Deus para dar-lhe conforto e riquesas. É por isso que os judeus quase todos são ricos. Já nós os pretos não tivemos um profeta para orar por nós” (JESUS, Carolina, 1960, posição 1832).“Na ruas só se vê cédulas pelo chão. Fico pensando nos desperdícios que as eleições acarreta no Brasil. Eu achei mais difícil votar do que tirar o titulo” (JESUS, Carolina, 1960, posição 1881).“7 DE OUTUBRO Morreu um menino aqui na favela. Tinha dois meses. Se vivesse ia passar fome” (JESUS, Carolina, 1960, posição 1889).“O gato é um sabio. Não tem amor profundo e não deixa ninguém escravisá-lo. E quando vai embora não retorna, provando que tem opinião” (JESUS, Carolina, 1960, posição 2251).“Está chovendo. Fiquei quase louca com as goteiras nas camas, porque o telhado é coberto com papelões e os papelões já apodreceram. As aguas estão aumentando e invadindo os quintais dos favelados [...] Deixei o leito as 4 horas, liguei o radio e fui carregar agua. Que suplicio entrar na agua de manhã. E eu que sou frienta! Mas a vida é assim mesmo. Os homens estão saindo para o trabalho. Levam as meias e os sapatos nas mãos. As mães prendem as crianças em casa. Elas ficam ansiosas para ir brincar na agua. As pessoas de espirito jocoso dizem que a favela é a cidade nautica. Outros dizem que é a Veneza Paulista” (JESUS, Carolina, 1960, posição 2288).Cena do filme "Parasitas" (2019)
"Hoje o céu está tão azul e sem poluição!
Graças por toda chuva de ontem!"
Carolina de Jesus: mulher, mãe de três filhos, moradora da favela, negra.
Crianças: filhos dos moradores da favela, inocentes e vítimas da miséria.
Cigano: homem galanteador avessos a compromissos.
Bêbados: homens, normalmente casados, doentes e violentos.
Senhoras: mulheres brancas que contratam os serviços das diaristas, moradoras da favela.
Políticos: pessoas ambiciosos e egoístas.
Juízes: redatores de sentenças que deixam até os mais humildes horrorizados.
Segundo dados da edição de 2021 do Relatório sobre Riqueza Global elaborado pelo banco "Credit Suisse", a depreciação da moeda brasileira levou à redução da riqueza por habitante no país em 2020 (CREDIT SUISSE, 2021, p. 9). De 2019 para 2020 o Brasil perdeu 108.000 pessoas com patrimônio avaliado acima de USD 1 milhão (CREDIT SUISSE, 2021, p. 20).
Por sua vez, o Relatório sobre Desigualdades, elaborado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD, indica que o Brasil, em 2020, ocupou a 8ª pior posição no 'ranking' de desigualdade de renda (PNUD, 2021).
Estima-se que no Brasil mais de 9 milhões de pessoas vivem com menos de USD 1,90/dia (2019), enquanto 42,5% da riqueza está concentrada nas mãos de apenas 10% da população (2018)¹.
Historicamente o Brasil foi a segunda região que mais recebeu escravos africanos entre 1701 e 1875, aproximadamente 38,9% do total do comércio transatlântico de escravos neste período. A América do Norte, por sua vez, recebeu aproximadamente 4% das mais de 4 milhões de almas que vieram escravizadas para o novo mundo. Apenas o Caribe possui participação maior que a do Brasil nesse fluxo, recebendo cerca de 52,6% do total². Essa mancha na historiografia brasileira explica algumas causas da sociedade desigual em que vivemos hoje.
Não há como negar: somos desiguais e o maior percentual do preço dessa desigualdade cai sobre os ombros nas pessoas negras. Abrir mão de privilégios não é fácil, gera resistência, mas persistir na injustiça impede que superemos o desafio do desenvolvimento.
Riqueza é poder viver sem medo: sem medo da fome e sem medo da violência.
Liberdade é conhecer o limite do respeito: é ver além de si mesmo, enxergando o outro como seu igual, abandonar o espelho que reflete um passado cruel de privilégios e discriminações. Ser livre de preconceitos e opressões.
Carolina nasceu em Sacramento-MG e quando criança frequentou a escola durante dois anos, com a ajuda e sustento oferecidos pela Sra. Maria Leite Monteiro de Barros, para quem a mãe trabalhava como lavadeira. Neste curto período aprendeu a ler e escrever.
Mudou-se para São Paulo com 23 anos, já com seus três filhos (João José de Jesus, José Carlos de Jesus e Vera Eunice de Jesus Lima), quando a cidade passava por um grande crescimento e as primeiras favelas apareceram. Sustentava-se catando papéis e outros materiais que podiam ser vendidos para reciclagem Entre 1955 e 1960 morou em Canindé, uma das primeiras favelas de São Paulo (LITERAFRO, 2021).
Seus diários foram descobertos pelo jornalista Audálio Dantas, nos anos 1950. Em 1960 foi publicado “Quarto de Despejo”. A obra alcançou recorde de vendas e permitiu a aquisição de uma Casa de Alvenaria por Carolina, este, inclusive, é o título de seu segundo livro publicado, em 1961. Publicou ainda outros livros, ao longo dos anos 1960, e faleceu em seu sítio, no interior de São Paulo, praticamente ignorada pela mídia e editoras, em 1977, com 62 anos.
¹Dados do Banco Mundial, disponíveis em <https://data.worldbank.org/>. ² Slave Voyages Database <https://www.slavevoyages.org/>.Compre o livro pelo link de associado da Amazon, assim você ajuda a autora conseguir mais créditos na loja, para novas aquisições e mais resenhas neste blog.
JESUS, Carolina de. Quarto de Despejo. Edição Digital. São Paulo: Editora Ática, 2019.
CREDIT SUISSE, The Global Wealth Report 2021. Disponível em <https://www.credit-suisse.com/about-us/en/reports-research/global-wealth-report.html>.
LITERAFRO. Carolina Maria de Jesus, atualizado em 05 de Novembro de 2021. Disponível em <http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/58-carolina-maria-de-jesus>.
PNUD, Relatório de Desenvolvimento Humano Regional 2021. Disponível em <https://www.br.undp.org/content/brazil/pt/home/presscenter/articles/2020/em-uma-armadilha--alta-desigualdade-e-baixo-crescimento-na-ameri.html>